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Perseguições, tretas e censuras: ano conturbado para a literatura este 2019

Rodrigo Casarin

18/12/2019 10h14

Na noite do dia 12 de julho, enquanto o jornalista Glenn Greenwald, sobre o barco da Flipei, tentava falar sobre seu trabalho à frente do The Intercept Brasil, responsável pelos escândalos da Vaza Jato, militantes de verde e amarelo tentavam silenciá-lo de forma pra lá de truculenta: soltavam rojões em direção à embarcação e à multidão que acompanhava a mesa. Faltou pouco para que tivéssemos a maior tragédia da história da Flip.

Dois meses depois, no começo de setembro, as sombras alcançaram a Bienal Internacional do Livro do Rio. Utilizando desculpas esfarrapadas para disfarçar sua homofobia, Marcelo Crivella, prefeito carioca, encasquetou com uma HQ na qual dois personagens se beijavam e fez um escarcéu contra o evento. Contou com o apoio de parte da população que distribuía mentiras via WhatsApp.

Os dois casos são bons exemplos desses tempos em que o obscurantismo que emana do governo federal e encontra eco em escalas locais pairou sobre o mercado editorial e sobre nossa literatura. 2019 foi um ano de gritaria e perseguição aos livros e às ideias. Lembremos de mais alguns casos.

A jornalista Miriam Leitão e o sociólogo Sérgio Abranches foram desconvidados da Feira do Livro de Jaraguá do Sul após cidadãos de bem fazerem ameaças aos dois – e à organização – após o anúncio da participação de ambos no evento. Em Nova Hertz, algo semelhante aconteceu com Luisa Geisler, mas com direito a apoio de vereadores e boicote ao livro "Enfim, Capivaras". De volta a Santa Catarina, por lá a Assembleia Legislativa do estado fez uma moção de repúdio contra a presença de "Um Útero é do Tamanho de um Punho", de Angélica Freitas (uma das obras mais importantes de nossa poesia neste século), na lista de livros obrigatórios para o vestibular da UFSC e da UFFS. Atos semelhantes a esses pipocaram pelo país.

Pintura de Lucio Massari.

Também não faltam despautérios vindos do Governo Federal. Fernanda Montenegro, que neste ano lançou sua autobiografia, foi ofendida publicamente por alguém que pouco tempo depois seria nomeado secretário da Cultura (um prêmio por desrespeitar nossa maior atriz?). Ainda nesse flerte com outras artes, difícil aceitar que a cinebiografia de Carlos Marighella, inspirada no ótimo "Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo", de Mário Magalhães, fez tremendo sucesso lá fora, mas não chegou aos nossos cinemas por meras questões burocráticas ou mercadológicas.

Voltando estritamente à literatura, tivemos Jair Bolsonaro desprezando o importante Prêmio Camões anunciado para Chico Buarque, um de nossos maiores artistas em atividade. O presidente também passou o ano vociferando contra Paulo Freire, intelectual brasileiro mais respeitado e estudado por universidades ao redor do mundo – para os truculentos, é mesmo difícil engolir alguém que defendeu tanto o amor, o respeito e a tolerância. Numa espécie de alívio cômico – se é que podemos falar em alívio cômico em meio a um cenário tão preocupante –, Bolsonaro voltou a atuar como digital influencer, catapultando a venda de "Valsa Brasileira", de Laura Carvalho, após rosnar contra a obra no Facebook.

Saindo um pouco das sombras governamentais, 2019 ainda foi um ano de tretas literárias (bem apegadas a questões políticas, é verdade) dignas de nota. Por aqui, a mais quente delas é a decisão da Flip de, em 2020, homenagear pela primeira vez uma estrangeira: Elizabeth Bishop, dos Estados Unidos, que chamou o golpe militar de 1964 de "revolução rápida e bonita". Outra ainda incandescente, esta internacional, é a sobre o Nobel de Literatura destinado ao austríaco Peter Handke, admirador confesso de Slobodan Milosevic, ex-presidente sérvio acusado de genocídio na Guerra da Bósnia. Regressando às brasilidades, leitores quiseram cancelar Pedro Bandeira por conta da adaptação (ou reescrita) do livro "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato, que neste ano entrou em domínio público.

Precisamos, no entanto, discernir as discussões levantadas nesse último parágrafo das perseguições relatadas nos outros. Debates dentro do meio literário são sempre bem-vindos (e faz parte que estejam permeados de questões políticas). Intervenção política na produção e na circulação intelectual e literária, por sua vez, não deve ser tolerada. Há muitos indícios para afirmar que a luta em 2020 deverá ser contra as diversas formas de censura.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.