Era das fake news? Estamos vivendo a “Era da Burrice”, isso sim
Rodrigo Casarin
19/10/2018 10h23
"Sem fatos consensuais – não os fatos alternativos do mundo repleto de bolhas de hoje -, não há a possibilidade de um debate racional sobre políticas, nem meios substanciais para avaliar candidatos a cargos políticos ou exigir que governantes eleitos tenham que prestar contas ao povo. Sem verdade, a democracia é tolhida".
É dessa forma que Michiko Kakutani encerra o seu "A Morte da Verdade" (Intrínseca). Michiko, que foi durante 34 anos uma das principais críticas literárias do New York Times, parte da ascensão política de Donald Trump para analisar como "o descaso pelos fatos, a substituição da razão pela emoção, e a corrosão da linguagem estão diminuindo o valor da verdade". Para falar sobre a manipulação de informações a autora se apoia em estudos, análises de discursos, passagens históricas e em livros de escritores como George Orwell e David Foster Wallace. Entram na sua mira não apenas as óbvias redes sociais, mas também como a literatura, a TV, a política e o mundo acadêmico contribuíram para o cenário preocupante que temos hoje.
Olhando ao nosso redor, não é difícil constatar como caminhamos para o calabouço que Michiko desenha no ensaio. Se lá fora há quem se aninhe em dados falsos para negar o aquecimento global, aqui falam em tirar o Brasil do Acordo de Paris e em desmatar ainda mais a Amazônia. Se lá fora um exemplo de manipulação histórica com desprezo pelos fatos é o revisionismo do Holocausto, aqui caminhamos a passos largos – dados inclusive pelo ministro Dias Toffoli – para tratar a ditadura civil-militar que vigorou no país entre 1964 e 1985 por qualquer outro nome que não seja o único que lhe cabe: ditadura.
Se lá fora a Rússia está por trás da manipulação digital de eleições como as dos Estados Unidos e do plebiscito do Brexit, aqui já sabemos que apenas 4 das 50 imagens sobre política mais replicadas no WhatsApp são verdadeiras e que empresários estão investindo milhões de reais para que informações – parte considerável delas falsas – contra determinados partidos e a favor de certos candidatos sejam amplamente difundidas.
"A verdade é um dos pilares da democracia. Como observou a ex-procuradora-geral interina Sally Yates, a verdade é uma das coisas que nos separam de uma autocracia: 'Nós podemos – e devemos – debater políticas e questões, mas esses debates devem se basear em fatos em comum, e não em apelações baratas à emoção e ao medo na forma de mentiras e uma retórica polarizante", registra Michiko.
Por aqui, a impressão que tenho é que muitas pessoas não se importam mais com a verdade ou com a democracia; preferem ter "fé" de que quem vive colocando o regime democrático na berlinda não terá coragem de abalá-lo, preferem acreditar em babaquices confortáveis, o que muitas fazem vezes de maneira deliberada. Se realmente há quem não consiga notar quando está diante de uma evidente mentira, impressiona a quantidade de pessoas supostamente esclarecidas que prontamente identificam algo inventado que vá contra as suas próprias convicções, mas que sempre abraçam e compartilham estúpidas e grosseiras falsificações que atacam o lado oposto ao de suas ideias.
Voltando ao livro e a Trump – um modelo do que vem acontecendo em diferentes escalas em várias partes do mundo -, ele chegou ao poder impulsionado por um eleitorado frustrado com a situação política de seu país e abalado por uma forte crise financeira. Em sua campanha apostou em mentiras, em divulgações maciças de fake news, e quando assumiu a Casa Branca a prática se manteve. O desprezo por informações o levou a solicitar aos seus auxiliares que lhe apresentem somente notícias elogiosas e apenas dados que confirmem suas convicções, mesmo que sejam forjados exclusivamente para tal.
O ensaio recorda que, poucos dias antes de Trump assumir a presidência, alterações sobre mudanças climáticas já estavam sendo feitas no site da Casa Branca. Depois, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos anunciou que sua página estava "passando por mudanças que refletem a nova direção da agenda". Como escreveu George Orwell, conforme recorda Michiko, é "atualizar a linguagem para refletir a abordagem dos novos líderes". O mais bizarro é que muitos dos eleitores de Trump batem palmas e defendem atitudes do tipo, dane-se a ciência e a verdade. Não é difícil vislumbrar até onde líderes que desprezam completamente o conhecimento podem nos levar: ao caos.
Estamos vivendo um tempo em que toda a nossa base para o diálogo, a troca de ideias e o avanço da própria civilização estão sendo deixados de lado por uma parcela significativa das pessoas. Ignorando que existe um saber estabelecido não pela truculência ou pela imposição, mas por fatos concretos e análises científicas apresentadas por quem está realmente comprometido com a ciência, não conforme interesses de governos ou indústrias, muitos andam escolhendo a mentira que mais lhe conforta. Protegidos pela própria bolha, vivem em mundos fantásticos que não possuem compromisso algum com o real, acreditando que o celular em suas mãos seja o oráculo do mundo. Se o século 20 foi chamado por Eric Hobsbawm de "Era dos Extremos", acho que o século 21 já pode ser chamado de "Era da Ignorância". Ou "Era da Burrice", para ser mais claro.
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.