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Cartas escritas por Mandela na prisão são exemplos de afeto e resistência

Rodrigo Casarin

10/10/2018 10h41

Se vivo, Nelson Mandela teria completado 100 anos no último dia 18 de julho. Por conta da efeméride, alguns livros sobre um dos maiores líderes do século 20 chegaram às livrarias do país. Finalmente conseguir ler o que mais chamou minha atenção: "Cartas da Prisão de Nelson Mandela". Editado por Sahm Venter e publicado pela Todavia, o volume reúne as missivas escritas por Madiba durante os 10.052 dias em que ficou preso, entre agosto de 1962 e fevereiro de 1990, condenado por incitar greves e deixar o país sem passaporte sul-africano.

Inimigo do estado racista, Mandela foi encarcerado quando tinha 44 anos, chegou a ter sua pena transformada em perpétua e só voltou à liberdade aos 71 anos. Certamente o maior nome no combate ao apartheid, regime de segregação racial que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994, ainda teve tempo de levar o Nobel da Paz de 1993 e presidir seu país entre 1994 e 1999. As cartas que escreveu no período de reclusão se destacam principalmente por transparecer o quanto o líder não abria mão de seus ideais e suas convicções, ao mesmo tempo em que demonstrava grande afeto por aqueles que lhe aguardavam fora das grades ou, por comprarem a mesma luta, estavam encarcerados em outros presídios.

É comovente a preocupação que demonstra com a ordem da casa, com a situação de sua mulher e com os filhos que crescem com o pai distante. É edificante a maneira como explicita sua batalha política mesmo trancafiado pelo sistema que combatia. E é exemplar como nunca abandonou os estudos, apesar das dificuldades impostas aos presidiários: mesmo tendo obtido o diploma em Direito em 1943 e já podendo atuar como advogado, persistiu com o sonho de se tornar bacharel, algo que só foi alcançar aos 70, 45 anos depois de se matricular na Universidade de Witwatersrand.

Veja alguns bons trechos de cartas de Mandela (reproduzo da maneira que a editora optou em sua edição, por isso a utilização do "&"):

Após a esposa também ser presa

"Mais uma vez nossa amada mamãe foi presa e agora ela e o papai estão na cadeia. Meu coração sangra quando penso nela em alguma cela policial longe de casa, talvez sozinha e sem ninguém com quem conversar, e sem nada para ler. Vinte e quatro horas por dia sentindo falta de suas pequenas. Pode ser que se passem meses e até anos antes que vocês a vejam de novo. Por muito tempo talvez vocês vivam como órfãs, sem seu lar e seus pais, sem o amor natural, o afeito e a proteção que a mamãe costumava lhes dar. Agora vocês não vão ter festas de aniversário nem de Natal, nem presentes, nem vestidos novos, sapatos nem brinquedos. […] Talvez nunca mais a mamãe e o papai voltem a se juntar a vocês na Casa nº 8115 da Orlando West, o lugar do mundo todo que nos é mais querido.

Não é a primeira vez que a mamãe vai para a cadeia. Em outubro de 1958, apenas quatro meses antes do nosso casamento, ela foi presa com 2 mil outras mulheres quando protestavam em Joanesburgo contra os passes de locomoção e passou duas semanas na prisão. No ano passado ela cumpriu quatro dias, mas agora ela voltou para a cadeia e não sei dizer quanto tempo ficará detida desta vez. Tudo o que desejo é que vocês sempre tenham em mente que temos uma mamãe valente e determinada que ama sua gente com todo o seu coração. Ela abriu mão de prazeres e confortos por uma vida cheia de sacrifício e penúria por causa do profundo amor que ela tem por seu povo e seu país" – carta de junho de 1969 escrita para Zezani e Zindzi, filha do meio e a caçula, sobre a prisão de sua esposa.

Sobre a perda do filho mais velho

"O golpe também foi atroz pra mim. Se não bastasse o fato de que eu não pude vê-lo por pelo menos sessenta meses, não tive a oportunidade nem de lhe propiciar uma cerimônia de casamento nem de enterrá-lo quando chegou a hora fatal. Em 1967 escrevi a ele uma longa carta chamando sua atenção para alguns assuntos que julgava que eram de seu interesse e que deveriam ser enfrentados sem demora. Eu esperava com ansiedades novas correspondências & mais ainda me encontrar com ele e sua família quando eu voltasse. Todas essas expectativas agora foram despedaçadas, pois ele foi levado embora na idade precoce de 24 anos e nunca mais o veremos" – carta escrita para sua ex-esposa em julho de 1969, após a precoce morte de Thembi, primeiro filho de Mandela.

O que fazem quando o privilégio é ameaçado

"Os meses passados na cadeia já estão sendo um duro teste para você & quando o caso chegar ao fim você terá uma compreensão mais profunda da natureza humana & sua fragilidade & do que os seres humanos podem fazer aos outros quando sua posição de privilégio é ameaçada. Quando essa ameaça emerge, todas as imponentes virtudes da democracia ocidental, sobre as quais tanto lemos nos livros, são postas de lado. Nem os padrões morais da civilização moderna, os ensinamentos da fé cristã, a ideia universal da fraternidade entre os homens, nem o puro senso de honra vão impedir os círculos privilegiados de exercer as inúmeras pressões à sua disposição sobre aqueles que lutam pela dignidade humana" – carta de novembro de 1969 para Winnie, sua esposa.

Luta por dignidade humana e vida decente

"Nesses tempos febris, em que o adversário está tramando ardilosamente & espalhando armadilhas por todo lado, somos chamados a ser extremamente cautelosos & vigilantes; & não há nada errado em chamar atenção para os perigos que nos aguardam, ainda que esses perigos estejam claramente à nossa vista. Lutamos contra um dos últimos bastiões de reação no continente africano. Em casos desse tipo, nossa missão é simples – no momento a apropriado declarar de modo claro, firme & preciso as aspirações que acalentamos & a África do Sul maior pela qual lutamos. Nossa causa é justa. É uma luta por dignidade humana & por uma vida decente. Nada deve ser feito ou dito que possa ser interpretado direta ou indiretamente como uma negociação dos princípios, nem mesmo sob a ameaça de uma acusação mais grave & de uma pena mais severa. Ao lidar com pessoas, sejam elas amigas ou inimigas, você é sempre educada & amável. Isso é igualmente importante em debates públicos. Podemos ser francos e autênticos sem ser afoitos ou ofensivos, podemos ser educados sem ser subservientes, podemos atacar o racismo & seus males sem nutrir em nós mesmos sentimentos de hostilidade entre diferentes grupos raciais" – mais uma carta para a esposa, esta de julho de 1970.

"O senhor não pode esperar que eu aceite uma decisão tão injusta"

"Se o senhor tivesse me concedido a oportunidade de expor minha causa antes de retirar meu direito, eu talvez pudesse convencê-lo de que no ano passado não tive permissão para estudar e, portanto, não poderia ter abusado desse direito. Isso sem contar o fato de que, de todo modo, no mundo esclarecido dos anos 1970, não vejo nada errado em prisioneiros e combatentes pela liberdade escreverem suas histórias de vida e preservarem-nas para a posteridade. Tais direitos têm sido garantidos livremente por todos os tipos de regimes desde a época romana.

Sou obrigado a lhe dizer que a conduta incomum que o senhor adotou ao lidar com essa questão carece tristemente daquele espírito e senso de responsabilidade que esperamos de um diretor de departamento governamental que trata das questões de quase 100 mil prisioneiros. Acredito sinceramente que seu verdadeiro objetivo ao nos privar de nossos estudos é o de nos emascular mentalmente e aniquilar nosso moral, o que é uma das piores formas de crueldade. O inexplicável abandono da conduta estabelecida no tratamento de toda a questão confirma essa impressão. Esses métodos arbitrários tendem a minar qualquer desejo da minha parte de respeitar a lei e a autoridade, e o senhor não pode esperar que eu aceite uma decisão tão injusta" – carta enviada ao comissário de prisões em dezembro de 1977.

Ao presidente: "Esperamos que o senhor seja o primeiro a renunciar à violência"

"A natureza pacífica e não violenta da nossa luta nunca causou comoção alguma a nosso governo. Pessoas inocentes e indefesas foram massacradas impiedosamente no curso de manifestações pacíficas. O senhor há de se lembrar da fuzilaria em Joanesburgo em 1º de maio de 1950 e em Shaperville em 1960. Em ambas as ocasiões, como em todos os outros exemplos de brutalidade policial, as vítimas eram homens, mulheres e até crianças invariavelmente desarmados e indefesos. Àquela altura o CNA não havia sequer debatido a ideia de recorrer à luta armada. O senhor era o ministro da Defesa do país quando não menos que seiscentas pessoas, em grande parte crianças, foram derrubadas a tiros em Soweto em 1976. O senhor era o premiê do país quando a polícia espancou pessoas, novamente no curso de manifestações ordeiras contra as eleições coloured e indianas de 1984, e 7 mil soldados fortemente armados invadiram o Vaal Triangle para esmagar uma manifestação essencialmente pacífica de moradores.

O apartheid, que é condenado não apenas por negros, mas também por uma parcela substancial dos brancos, é a maior fonte individual de violência contra o nosso povo. Como líder do Partido Nacional, que busca sustentar o apartheid por meio da força e da violência, esperamos que o senhor seja o primeiro a renunciar à violência. Mas parece que o senhor não tem intenção alguma de usar formas democráticas e pacíficas de lidar com as queixas dos negros, e que o real propósito de impor condições a sua oferta é garantir que o Partido Nacional desfrute do monopólio da violência contra pessoas indefesas" – carta para P. W. Botha, presidente da África do Sul, escrita em fevereiro de 1985.

Seguiria o mesmo caminho

"Quando um homem se compromete com o tipo de vida que tem levado há 45 anos, ainda que ele possa ter estado desde o início consciente de todos os riscos que o aguardavam, o curso real dos eventos e o modo preciso como eles influenciaram sua vida jamais poderia ter sido antevistos em todos os aspectos.

Se eu pudesse ter sido capaz de prever tudo o que ocorreu desde então, teria certamente tomado a mesma decisão, ou pelo menos assim acredito. Mas essa decisão certamente teria sido muito mais amedrontadora para mim, e algumas das tragédias que se seguiram teriam amolecido qualquer vestígio de aço que houvesse em meu interior. A morte de nossos entes amados e de nossos amigos íntimos, aos quais somos unidos por incontáveis laço, alguns remontando a várias décadas; a ampla variedade de problemas aos quais a nossa família ficaria exposta na nossa ausência, esses são desastres pessoais frequentemente difíceis de suportar e, em muitas ocasiões, fazem a pessoa se perguntar se nesse tipo de vida ela deveria ter uma família, criar filhos e fazer amizades" – carta de fevereiro de 1986 endereçada a uma amiga.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.