Topo

Democracia pode acabar antes que o Brasil consiga realmente implementá-la

Rodrigo Casarin

21/09/2018 10h40

"A democracia representativa contemporânea está cansada. Tornou-se vingativa, paranoica, iludida, desajeitada e muitas vezes ineficaz. Em boa parte do tempo, vive das glórias do passado. Esse triste cenário reflete aquilo em que nos transformamos. Mas a democracia de hoje não é o que nós somos. É só um sistema de governo, que construímos e podemos substituir. Por que então não a trocarmos por coisa melhor?"

Com grande curiosidade que peguei para ler "Como a Democracia Chega ao Fim" (Todavia), ensaio escrito por David Runciman, professor de política na Universidade de Cambridge. Faz bem pra cabeça questionar grandes convicções, como a certeza de que a democracia é o melhor caminho para a política. Foi vendo Donald Trump assumir a presidência dos Estados Unidos que o próprio autor se questionou: então "é assim que a democracia chega ao fim?".

Não, para Runciman a democracia ainda não acabou, mas vive uma crise de meia idade, procurando por novas e às vezes ousadas experiências. Como sabemos, porém, após a crise da meia idade vem a velhice, a decrepitude e, enfim, a morte. E, no futuro, o que substituirá a democracia? O autor elenca algumas alternativas bizarras cogitadas por aí – nações transformadas em empresas comandadas por CEOs, restauração de alguma forma de monarquia absoluta, deixar para que os computadores tomem decisões e nos governem… -, mas também se centra em três possibilidades um tanto mais concretas: o autoritarismo pragmático, a epistocracia e a tecnologia liberada.

Só que para o leitor brasileiro, que vive neste momento mais um teste à própria democracia, pensar num futuro que não seja a próxima semana – ou os próximos 16 dias, culminando nas eleições – parece algo precipitado. De modo geral, Runciman vê que a democracia pode acabar de três formas: 1) Via grandes desastres (naturais ou atômicos, por exemplo, o que extrapola ações de um país como o nosso), 2) Por conta dos impactos que a tecnologia da informação já causam e ainda nos causarão (algo que inegavelmente nos diz respeito neste momento) e 3) Graças a um golpe de estado ou calabouço político. É este último que me parece mais urgente.

David Runciman.

Runciman é um tanto otimista. Enxerga o mundo num momento diferente daquele vivido na década de 1930 – à qual muitas vezes nos comparamos -, diz não notar uma segunda alvorada do fascismo e violência em escala mundial. Tenho lá minhas dúvidas. Também diz não acreditar que golpes de estado como os que infelizmente nos acostumamos a ver na segunda metade do século 20 – com militares tomando o poder na base da força e o mantendo via carnificina – possa acontecer nos dias de hoje. Assume, contudo, que golpes podem se concretizar de outras formas, como por articulações do mercado financeiro ou com canetadas e artimanhas dos próprios políticos.

"Os golpes promissórios e as ampliações do poder Executivo requerem que a aparência de democracia se mantenha, porque o sucesso do golpe depende da crença de que a democracia continua a existir. Para certos tipos de golpe, a democracia não é o inimigo a destruir. Ela funciona como disfarce para uma subversão, e por isso é amiga dos conspiradores", escreve.

Agora, há um ponto fundamental que o leitor brasileiro precisa ter em mente ao ler "Como a Democracia Chega ao Fim", ponto este que o próprio autor assume: Runciman olha majoritariamente para a democracia dos Estados Unidos (e, nas vezes que passa por outros países, centra-se em nações de primeiro mundo). Sua análise se baseia principalmente a partir um país onde "House of Cards" ainda é visto como ficção, não como um pastiche mequetrefe da própria realidade.

Um exemplo da diferença entre essas realidades. Segundo o autor, "a definição mínima de democracia afirma simplesmente que, numa eleição, os perdedores aceitam a derrota. Entregam o poder sem recorrer à violência. Noutras palavras, dão um sorriso amarelo e aguentam firme". Nos Estados Unidos isso já aconteceu 57 vezes, sendo que apenas em 1861 que não houve o aceite total da eleição de Abraham Lincoln e o pau quebrou entre Sul e Norte na Guerra de Secessão.

No Brasil estamos indo para nossa oitava eleição presidencial consecutiva, sendo que em duas dessas oportunidades os presidentes eleitos foram chutados de seu cargo antes do fim do mandato e as trocas de favores entre partidos, as alianças escusas e o mercado financeiro com a faca no pescoço do governo sempre fizeram parte dos nossos últimos 30 anos. Antes disso, não custa recordar, tentativas de períodos democráticos foram interrompidas por ditaduras, a última delas com claro incentivo dos próprios Estados Unidos.

Runciman também lembra que Hilary Clinton venceu numericamente as últimas eleições norte-americanas por mais de 2,9 milhões de votos de vantagem – um recorde dentre os derrotados -, mas perdeu o pleito por conta das "regras arcaicas" do Colégio Eleitoral. "Na noite das eleições, Clinton teve dificuldade em aceitar que tinha sido vencida, como tantos outros candidatos derrotados. Obama ligou pra ela e insistiu que devia admitir o resultado o mais depressa possível. Disso dependia o futuro da democracia dos Estados Unidos". Já aqui, candidatos descredibilizam o nosso sistema eleitoral durante a própria campanha, mesmo tendo sido eleitos para certos cargos exatamente por esse sistema. Quando perdem, ainda colocam em xeque a vitória de seus adversários.

Por fim, alguns pontos que me fazem ter até alguma inveja de como Runciman encara a democracia a partir da perspectiva dos Estados Unidos. Para ele, o país possui um sistema forte o suficiente para suportar até mesmo um Donald Trump sem que a própria democracia se esfrangalhe. Ainda escreve que "as democracias estáveis preservam sua extraordinária capacidade de evitar o pior, mesmo sem dar cabo dos problemas que antes representavam uma ameaça catastrófica". Por fim, confia que "quando as pessoas ficam absolutamente fartas de certos políticos, sempre podem substituí-los por outros. Os péssimos líderes podem ser despachados mais ou menos sem dor. Partidos políticos moribundos acabam despejados nos pátios dos ferros-velhos". Quem dera fosse mesmo assim.

Ler "Como a Democracia Chega ao Fim" me deu vontade de experimentar uma realidade política como essa pintada pelo autor. Ainda que não seja esse o objetivo do livro, em suas nuances fica clara a diferença entre viver num país com períodos democráticos e viver em uma democracia de fato. Pelo visto, há boas chances de que o sistema democrático chegue globalmente ao fim sem que um dia tenha se estabelecido plenamente no Brasil. É bom mesmo já começarmos a pensar no que vem depois disso, quem sabe assim não perdemos mais uma vez o bonde da história.

Gostou? Você pode me acompanhar também pelo Twitter e pelo Facebook.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.