Centenário de Antonio Callado: sua obra é uma forma de conhecer o Brasil, afirma viúva do autor de Quarup
Rodrigo Casarin
26/01/2017 06h00
Se estivesse vivo, Antonio Callado completaria 100 anos hoje. Não conhece? Apresento. Como jornalista, trabalhou em importantes veículos do Brasil, Inglaterra e França. Como escritor, é o autor, dentre outros, de "Quarup", um dos livros nacionais mais importantes da segunda metade do século 20. Como pessoa, foi alguém apaixonado pelo país e que, por se opor à ditadura, foi duas vezes detido. Morreu em 1997, aos 80 anos.
"A paixão de Callado pelo Brasil começou quando ele, jovem, trabalhou na BBC, em Londres, e na Radio Diffusion Française, em Paris. Depois de seis anos na Europa, voltou [no meio da década de 50] com 'fome de Brasil', como ele disse várias vezes. Sua obra era uma forma dele descobrir o país e dá-lo a conhecer aos leitores. Neste sentido, ainda é atualíssima", afirma Ana Arruda Callado, a viúva do autor e responsável pelo seu legado literário.
Com a pena na mão, então, Callado escreveu sobre o Brasil que conheceu a fundo em viagens por rincões como o Xingu: tratou dos índios violentados por madeireiros e garimpeiros e ignorados ou odiados pelo poder público, dos conflitos entre a "civilização" e a natureza, do choque entre culturas, de racismo, de desigualdade social e dos grandes latifúndios sustentados com a ajuda do governo.
Falou também, e muito, da ditadura instaurada no país pelo exército a partir de 1964. Se em "Quarup", como recorda Ana Arruda, criou um ex-padre que entra para guerrilha e tratou de tortura, citou a deposição do governador Miguel Arraes pelos militares e mostrou os índios como um povo com uma bela cultura própria – veja mais sobre o livro aqui –, ele mesmo, à sua maneira, tentou ser a resistência ao momento que o Brasil vivia.
O escritor foi um dos detidos no episódio que ficou conhecido com os "Oito do Glória", quando uma manifestação foi armada em frente ao Hotel Glória, no Rio de Janeiro, para denunciar à OEA, que realizaria ali uma conferência em novembro de 1965, o estado ditatorial que o Brasil se encontrava. Apesar de muita gente ter confirmado que iria ao ato contrário aos militares, no dia mesmo apenas oito cidadãos apareceram: Carlos Heitor Cony, Thiago de Mello, Jaime de Azevedo Rodrigues, Flavio Rangel, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro e, claro, Callado. Intelectuais de peso que acabaram encarcerados.
Sua segunda detenção aconteceu em 1978, quando retornou de uma viagem a Cuba com sua família. Passou mais de 12 horas na Polícia Federal e no Departamento de Polícia Política e Social "prestando satisfações". A principal suspeita era que Callado estivesse trazendo "material suspeito" da ilha. "Basicamente o que eles queriam saber era: o que nós fomos fazer em Cuba? O que nós vimos? Com quem nos encontramos? Respondi que fui convidado para um concurso literário, não vimos nada demais e não mantivemos contato com nenhum marginal", disse o escritor a jornalistas depois de ser liberado.
"Um dos maiores e mais completos escritores do Brasil"
Voltando aos livros, é mesmo "Quarup" que desponta como obra-prima indiscutível quando olhamos para a produção de Callado, mas o escritor Alberto Mussa lembra que o autor também foi responsável por diversos títulos de inegável excelência. "Ele escreveu outros romances excepcionais, como 'A Madona de Cedro', um dos maiores estudos ficcionais sobre a culpa e o arrependimento; e também sobre o heroísmo. Ou como 'Bar Dom Juan', que traça um painel profundo e impiedoso da resistência à ditadura, e 'A Expedição Montaigne', dos poucos romances brasileiros que trata do índio real, contemporâneo", aponta o autor de "A Primeira História do Mundo".
Callado ainda assinou diversos textos teatrais, área que lhe projetou inicialmente. Esses escritos também receberam a atenção de Mussa. "Ele foi um dramaturgo seminal: 'Pedro Mico' talvez seja o clássico do consenso, mas há ainda 'Frankel', peça perturbadora sobre a presença e a atuação dos 'civilizados' nas reservas indígenas; ou 'A Cidade Sitiada', sobre a história das vilas do interior de São Paulo, à época da Confederação dos Tamoios".
Lembrando do lado jornalista de Callado, Mussa o trata como um "repórter genial" e cita como exemplo dessa sua faceta a reportagem "Esqueleto na Lagoa Santa", a respeito da expedição do coronal Fawcet em busca de cidades lendárias que teriam existido no interior do país. "Poucos escritores têm leque temático tão amplo e dominam tão perfeitamente mais de um gênero literário. Antonio Callado é um dos maiores e mais completos escritores do Brasil", completa.
DOCUMENTÁRIO SOBRE CALLADO SAIRÁ NO 2º SEMESTRE. PARA DIRETORA, QUARUP NORTEOU UMA GERAÇÃO
Novo livro e documentário
Em virtude do centenário, um documentário a respeito do escritor será lançado no segundo semestre – veja mais aqui. Além disso, em abril, sairá pela Autêntica o livro "O País que Não Teve Infância: As Sacadas de Antonio Callado", que reúne 86 textos publicados no fim dos anos 70 e no início dos 80 e refletem os últimos anos do governo militar no Brasil, mas também passam por temas que vão da amizade até a situação política de países como Argentina e Uruguai.
Segundo Ana Arruda, a responsável pela organização do volume, esses registros vindos de décadas passadas "relembram a fina ironia do autor e tratam de muitas pessoas importantes para a história recente do Brasil e que andam meio esquecidas", além de permanecerem atuais em uma nação que continua com problemas muito parecidos com aqueles que Callado tratou ao longo de sua vida.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.