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Callado “mexeu com o fogo” e “soltou os cães” contra a ditadura, diz Ignácio de Loyola Brandão sobre Quarup

Rodrigo Casarin

26/01/2017 06h00

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"Quem não viveu aquela época entende pouco o impacto que 'Quarup' provocou. Publicado em plena ditadura, escrito na linguagem rigorosa de Callado, um jornalista que tinha informação e estilo, um romancista que era exigente, Callado soltou os cães, esbravejou. Falar de ditadura, repressão, tortura, assassinatos, clandestinidade, luta armada, era mexer com fogo. Podia ser preso, morto, torturado, desaparecer. O escritor desmascarou todo o sistema, juntou épocas, Getúlio, Lacerda, militares, tudo e todos, era tudo farinha do mesmo saco. A qualquer momento sua porta era arrombada e a morte entrava. Prendia-se pelo menor motivo. Sabia-se destas coisas principalmente os da mídia, mas não podiam falar".

É dessa forma que o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão recorda do colega de profissão e romancista Antonio Callado, que, se vivo, completaria 100 anos hoje, e de sua obra-prima: "Quarup". A obra foi lançada em 1967 e se tornou um dos livros mais importantes não apenas daquela década, mas da história da literatura nacional, a ponto de, para o escritor Alberto Mussa, transformar-se em algo tão grande que ofusca seu próprio autor – veja mais aqui.

Levada ao cinema em 1989 por Ruy Guerra, a narrativa transcorre entre o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e o golpe militar de 1964. Nela, nos deparamos com Nando, um jovem padre com conflitos existenciais que busca explicações para a vida em uma viagem rumo ao Xingu para trabalhar com tribos indígenas. Por lá, além de se deparar com a natureza, também tem contato com diversos prazeres da vida, muitos deles coibidos pela igreja.

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Mais adiante, após a ditadura ser instaurada no país, Nando é preso por trabalhar com a alfabetização de adultos, atividade vista como subversiva pelos militares. Dos novos conflitos que isso lhe traz, ao cabo, enfim, resolve pegar em armas para lutar contra a situação que o país se encontrava.

"Callado condensou tudo em um livro admirável pela humanidade de Nando, pela coragem, pela dificuldade de amor em uma época violenta. Callado o que fez em 'Quarup'? Mandou uma mensagem a todos nós escritores. Vamos falar, mostrar o que acontece, vamos contar, contar livremente é a função de um escritor. E ele contou, colocou o dedo na ferida, remexeu. Numa linguagem impecável. Abriu caminho para todos de minha geração. Eu o admirava, respeitava ficava orgulhoso de ser amigo dela, de ser contemporâneo. Nem parecia que tinha 20 anos mais do que eu, dava a sensação de sermos da mesma idade", continua Ignácio.

Quem também já se debruçou sobre o livro é Francisco Venceslau dos Santos, doutor em Teoria da Literatura. No artigo "Quarup: Literatura e Ritual", ele lembra que a palavra quarup, na cultura do Alto Xingu, significa um "mito das origens, uma celebração dos ancestrais e um rito de ressurreição".

Aprofundando-se em sua análise, o doutor classifica a obra como um "romance pós-moderno" que "recicla narrativas míticas e históricas, e fontes temáticas que construíram a imagem negativa do país como uma nação de preguiçosos, doentes, e ao mesmo tempo elabora uma imagem otimista de constante invenção do Brasil. Este romance dos anos 60 emerge como voz do Terceiro Mundo – a fala simbólica do pós-colonizado – liberação de energias, cintilações de otimismo e frustração diante do novo cenário que se desenrolava no horizonte. Vivia-se o período em que o discurso pós-colonial se articulava com as falas emancipadoras do Primeiro Mundo – em que estudantes e intelectuais se revoltavam contra paradigmas teóricos e políticos anacrônicos".

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Leia um trecho de "Quarup":

"Nando voltou com uma paste em que enfiara os remédios, a garrafa térmica de café e o pão. Desinfetou e atou a mão ferida enquanto Levindo, muito branco, desviava o olhar para não assistir ao curativo. Depois Levindo mordeu com fome o pão e tomou grandes sorvos de café. Ficou de rosto rosado, de olhos brilhantes e Nando, por um momento, mergulhou por completo no enlevo de ver a vida animando de novo a cara daquele quase menino ainda. Enlevo de pouca duração porque Levindo de pronto tirou um cigarro do bolso e o acendeu cantarolando uma música popular. O fumo, a música, a caveira com a nódoa de sangue eram uma espécie de representação palpável das distrações inimigas dos místicos. Levindo deu uma tragada funda e espalhou uma nuvem de fumaça pelos esqueletos e pelo Cristo".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.