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Lamber pedra e beber durante o sexo: as esquisitices de uma sommelière

Rodrigo Casarin

20/02/2019 11h02

Crédito da imagem: Matt Nguyen.

Bianca Bosker era uma repórter que escrevia sobre tecnologia quando acompanhou Matt, seu companheiro, a um jantar de negócios. À mesa, ouviu o responsável pelos vinhos da casa comentar que estava se preparando para participar de um concurso que escolheria o melhor sommelier do mundo. Bianca encasquetou-se. Como podia existir um campeonato de servir vinho? Ouviu algumas explicações e foi pesquisar mais sobre o assunto quando chegou em casa. Ficou obcecada. Decidiu, então, que deixaria de ser uma mera bebedora ocasional e mergulharia naquele mundo. Queria "entender o que fazia os sommeliers vibrarem, o que proporcionava uma existência mais sensorial, o que tornava o vinho tão incrivelmente fascinante e quais eram as falácias mais significativas dessa indústria".

Empolgada, estipulou uma meta ousada: se prepararia e tentaria passar na prova do Court of Master Sommeliers, que recebe cerca de 200 candidatos todos os anos e aprova apenas uns 10% deles. "Em média, nos anos que os levam até o exame, os aspirantes a mestre provam mais de 20 mil vinhos, estudam 10 mil horas, fazem mais de 4 mil fichas didáticas e colam 25 mapas plastificados na parede do chuveiro", enumera, talvez com certo exagero, em "Cork Dork – Loucos por Vinho" (SESI-SP Editora), livro que escreveu relatando a imersão no universo de Baco.

O primeiro desafio de Bianca seria desenvolver o paladar e o olfato, dois sentidos normalmente um tanto desprezados por todos nós. Para tal, deu um jeito de se meter entre os fanáticos por vinho de Nova York e logo estava tendo aulas informais surpreendentes. De pronto, notou que precisaria aprender a cuspir. Sei que pode parecer estranho levar à boca vinhos de alguns milhares de reais, fazer um bochecho e dispensar a bebida, mas a prática tem seu sentido: é a melhor maneira de alguém que está estudando o vinho conseguir provar a maior quantidade possível de rótulos sem ficar bêbado – ou com a sensibilidade severamente abalada – após algumas poucas taças. Em longas bateladas de degustações que exigem que o bebedor esteja plenamente atento a tudo o que leva à boca, saber cuspir é fundamental.

"Me apresentaram o 'cuspe com confiança' – franzir os lábios para soltar um jato contínuo e forte – e o 'duplo cuspe' – cuspir duas vezes por gole, para garantir que realmente não se engoliu álcool e se absorveu uma quantidade mínima pela mucosa bucal. Na primeira vez que experimentei essa elegante maneira de cuspir no balde, algumas gotas me respingaram na face e na testa", recorda a autora.

Provar uma infinidade de frutas e ficar no mercado cheirando todas as ervas que encontrava pela frente passou a fazer parte de sua rotina. E não só. Para expandir a percepção para terroirs, outro sommelier lhe orientou a colocar um pouco de terra na dieta: "Lamba pedras quando for dar uma volta. Eu lambo pedras o tempo todo", revelou o colega. E qual tipo de pedras lamber? Qualquer uma que "não tenha sido lambida antes. É divertido perceber a diferença entre a ardósia vermelha e a azul. A vermelha tem mais ferro, e o sabor dela é de carne sangrenta. Já o gosto da ardósia azul lembra o de pedra de rio molhada".

Procurando dominar as nuances que caracterizam os vinhos de diferentes regiões do planeta, até o sexo virou um momento oportuno para o estudo. "Em um ato de desespero para interiorizar o sabor do Chablis, um vinho que quase sempre errava, convenci Matt a me ajudar com um exercício de aprendizagem associativa proposto por Johan Lundström, neurocientista que conheci em Dresden. 'Uma das melhores combinações é fazer algo durante o sexo', segundo Johan. Palavra de sábio: nada acaba tanto com o tesão do que espirrar Chablis pelo nariz", relata.

Estagiando em restaurantes e não recusando convites para degustações que normalmente aconteciam pelas manhãs, levava uma vida pouco elogiável. "Eu estava bêbada a maior parte do tempo. Eu participava de três ou quatro grupos de degustações às cegas por semana, o que significava que eu ficava sóbria, em média, umas 6 horas por dia. Quando não estava degustando, o que eu fazia com mais frequência, estava inalando – tentando, por exemplo, enumerar as fragrâncias do meu xampu enquanto tomava banho – ou juntando guias de estudos com denominações de vinhos. Eu tinha uma enxaqueca permanente e estava preocupada com o que tudo isso podia causar a meu corpo".

Logo no começo da obra, Bianca deixa o alerta: "O processo para se tornar sommelier em um dos melhores restaurantes do planeta faz a faculdade de Direito parecer um breve passeio pelo parque". Pelo que apresenta ao longo de "Cork Dork", não são meras palavras usadas para impressionar o leitor. Na imersão no mundo do vinho, a jornalista conheceu pessoas que não escovam os dentes antes de degustações, que cortaram o café de suas vidas, que não chegam nem perto de cebola para evitar que o cheiro fique impregnado e que só tomam sopa gelada para não correr o risco de queimarem a língua. Procurando compreender o sistema gustativo e olfativo, a autora debruçou-se sobre uma série de pesquisas científicas, viajou para congressos acadêmicos e chegou até a dissecar a cabeça de alguns cadáveres.

Tudo isso nos dá uma ideia de quão a fundo Bianca foi, e aí que está o maior mérito do livro: ele não se limita a curiosidades ou dicas para quem deseja entender melhor a bebida, mas revela muito do machismo e do esnobismo que cercam o vinho e investiga quais são as verdades quase sacras desse meio que não resistem a alguns testes idôneos. Explorando a psicologia por trás do consumo, a autora resgata, por exemplo, experimentos que mostram o quanto o preço e os rótulos influenciam diretamente na experiência de quem bebe o vinho e como supostas preciosidades podem ruir em degustações às cegas. Em certo momento, revela o que ouviu do gerente de uma empresa do ramo: "O segredo sujo desse negócio é que uma garrafa de vinho de US$ 1 mil talvez seja só 2% melhor que uma de US$ 50, e às vezes nem é".

Um ponto curioso ao se observar ao longo da leitura de "Cork Dork" e também em outros livros e documentários sobre o assunto – "Somm" e "Sour Grape", por exemplo – é como os grandes sommeliers bradam conhecer intimamente vinhos de todo o globo, mas, na verdade, dificilmente saem das regiões badaladas do Velho Mundo e de algum canto na moda ou inusitado do Novo Mundo. Dificilmente vemos esses sommeliers se debruçando sobre Syrahs de colheita invertida feitos na Serra da Mantiqueira, Malbecs com uma pegada mais rústica de Tarija, na Bolívia, ou sobre os ótimos Tannats uruguaios.

Bem, mas Bianca foi a fundo nesse universo para revelar suas entranhas, não para modificá-las, então esse não é um problema exatamente do seu ótimo trabalho. Há tempos não pegava um relato tão prazeroso de se ler quanto "Cork Dork". Há ali muitas informações, experiências genuínas, reflexões oportunas, provocações e revelações que podem ser incômodas para muita gente não só do meio do vinho, mas de indústrias que se sustentam com premissas semelhantes – alô povo da cerveja artesanal! E a autora nos apresenta tudo isso com um texto fluído, leve, com boas pitadas de humor e agradáveis doses de ironia.

Ao final, mais do que um retrato multidimensional do mundo dos sommeliers e dos vinhos, Bianca mostra ao leitor que qualquer um pode apreciar melhor aquilo que consome – e não é necessário lamber pedras ou beber durante o sexo para tal. "Toda pessoa tem a capacidade de encontrar e saborear a alma que vive no vinho – e em outras experiências sensoriais – se souber procurar. Você não precisa de um fundo fiduciário ou vinho de graça. Não precisa de supersentidos. Nem precisa abrir mão do café ou beber quantidades irracionais de álcool às dez da manhã das terças-feiras. Sentir algo pelo vinho e liberar os sentidos começa por prestar atenção… e se dedicar com gosto".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.