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Lamber o brinco e jogá-lo no chão: o ritual erótico de um povo indígena

Rodrigo Casarin

23/10/2018 11h42

Cabia às mulheres, principalmente se eram amantes, tomar a iniciativa para o sexo entre os Wari'. O ritual erótico consistia em puxar "o pedaço cilíndrico de madeira que servia de brinco ao rapaz", lambê-lo e jogá-lo no chão, ou então fazer "cosquinhas" nas costas do homem desejado. O moço, então, dizia que ia pro mato cortar lenha. Tempo depois, a amante arrumava alguma desculpa e tomava a mesma direção. Tinham por lá, o homem sobre a mulher, que ocasionalmente reclamava dos espinhos da mata. "As esposas, por sua vez, desconfiavam que os maridos tinham amantes quando o ato sexual demorava mais do que o costume"; na verdade, "gostavam quando o marido ejaculava rapidamente".

Retiro esse traço cultural dos Wari', povo indígena amazônico, de "Paletó e Eu – Memórias de Meu Pai Indígena", escrito por Aparecida Vilaça e recém-lançado pela Todavia. Aparecida conheceu os Wari' na década de 1980, quando iniciava os estudos de campo para sua formação como antropóloga. No volume, fala sobre os hábitos desse povo a partir da relação de amizade e cumplicidade que construiu com Watakao', o Paletó, que passou a ser o seu pai indígena.

O grande mérito da autora em "Paletó e Eu" é apostar numa narrativa agradável e nem um pouco academicista para apresentar ao eleitor elementos da cultura dos Wari'. Um exemplo: "Falar livremente sobre sexo é uma característica dos Wari' e, pelo que contam meus colegas antropólogos, de muitos outros grupos indígenas", escreve a autora. Além disso, a obra mostra como a vida desses povos mudou nas últimas décadas por conta do contato com o homem branco, uma relação marcada pelas trocas e pelas imposições.

Watakao', o Paletó, em foto de Aparecida Vilaça.

Se antigamente os Wari' não sabiam fazer fogo e precisavam carregar uma tocha acesa por onde iam, isqueiros e fósforos foram apresentados como tecnologias milagrosas. Por outro lado, suas moradias passaram a ter que ser trancadas por conta da violência e, se antes a caça ou a pesca eram prontamente distribuídas aos parentes próximos e às crianças, agora os pedaços de carne arranjados pelos membros da tribo são comercializados por quilo aos vizinhos e até para os familiares.

"A paz que se supõe dar hoje a tônica da relação dos Wari' com os brancos é muito tênue, pois a tensão aflora em várias ocasiões desse convívio. No comércio da cidade, os Wari' são estigmatizados por sua aparência e dificuldade com a língua portuguesa. Em algumas ocasiões recentes, seringueiros entraram à noite em aldeias wari' situadas nas margens de sua reserva e os ameaçaram com armas, causando tanto pânico que uma das aldeias, Ocaia II, foi abandonada", escreve Aparecida, evidenciando o quanto a questão indígena no país carece de atenção e boa vontade de todos, mas principalmente das autoridades.

A própria história de Watakao' é um exemplo desse choque entre povos. A partir da década de 1940, acirraram-se os conflitos entre indígenas e seringueiros, que, armados com espingardas e metralhadoras, passaram a invadir terras com grande sanha. Por volta de 1955, Watakao' sobreviveu a um ataque que dizimou quase toda a sua família. Durante trinta anos o indígena viveu longe dos homens brancos, a não ser quando estes apareciam para atacar o seu povo.

Numa ocasião de contato mais amistoso, sua vida começou a mudar radicalmente. Foi aí que ganhou seu apelido, inclusive. "Viu o chegar dos brancos, as doenças, as comidas estranhas e as roupas. Contam que depois de rejeitar se cobrir com o que lhe ofereciam, finalmente encantou-se com um paletó, e o adotou sobre o seu corpo nu. Foi quando ele, que se chamava Watakao', passou a ser conhecido por Paletó".

Aparecida e Paletó, o seu pai indígena. Foto: Carlos Fausto.

Faz parte desse contato de Paletó com o homem branco, claro, a relação que construiu com Aparecida. São ótimos os momentos do livro em que ele aparece na casa da antropóloga no Rio de Janeiro, descobrindo a metrópole. Ao ir ao zoológico, fica impressionado em saber que ninguém comia aqueles animais. São muitos os choques e descobertas. "As pessoas aqui não dormem?", questiona ao reparar que algumas luzes da rua e de prédios nunca se apagam. "Como é possível um lugar sem sombras?", surpreende-se ao visitar uma exposição. "Ele vai morrer e você não se preocupa?", assusta-se ao ver o enteado de sua "filha" surfando.

Aparecida começou a escrever o livro assim que soube da morte de seu pai indígena, há dois anos. Segundo o ritual fúnebre wari', o corpo de Paletó deveria ser velado e na sequência assado e servido para que os membros da tribo pudessem comê-lo. "Ao comerem, os não parentes mostravam aos enlutados que um cadáver não é mais gente, e que por isso podia ser comido. Davam início, assim, ao longo processo de elaboração do luto por parte dos parentes, que culminava com a capacidade de adotarem, eles também, a perspectiva dos não parentes, dos comedores, eliminando de sua memória a visão humana do morto", explica a autora.

O próprio Paletó tinha certa dificuldade com esse ritual. Dizia que carne de gente, assada após algum tempo da morte da pessoa, ou seja, já com o corpo em início de decomposição, apresentava um cheiro muito forte. No entanto, seu destino acabou sendo outro. Convertido ao cristianismo após a chegada da igreja ao povoado, pediu para que não fosse assado e comido, mas enterrado, assim poderia ir para o céu evangélico. Mais uma marca do choque de cultura entre indígenas e o homem branco.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.