Abertura da Copa? Só um Mauro Shampoo salvaria esse Rússia X Arábia Saudita
Estou ansiosíssimo para que a bola role para Rússia e Arábia Saudita e enfim comece a Copa de 2018. Contudo, convenhamos, o joguinho sem vergonha que deverá ser esse. Não há como criar expectativa alguma de grandes lances, bola lá e cá ou reviravoltas memoráveis, não são seleções afeitas a proezas. Esperar algo mágico de Abdulmalek Al-Khaibri ou mesmo de Samedov? Mais fácil o Putin declarar o fim do programa bélico russo. Minha aposta é num 2X0 pros anfitriões numa partida totalmente chocha. Seria preciso um grande nome para dar dimensões épicas a um jogo desses, um grande nome como Mauro Shampoo.
Hoje Mauro Shampoo é cabeleireiro, tem um salão no Recife. Quem o vê com tesouras em mãos talvez não imagine que aquele homem é um dos maiores jogadores da história do futebol brasileiro. Pelo menos da história do futebol brasileiro encarada pela perspectiva do Íbis, time fundado em 1938 e que orgulhosamente ostenta o título de pior equipe de todos os tempos – dentre os feitos memoráveis está a campanha feita no Campeonato Pernambucano de 1983: 23 jogos e 23 derrotas, 0% de aproveitamento.
Revelado pela Associação Atlética das Vovozinhas, Shampoo é o maior nome de toda a história do Íbis. Defendeu com bravura a camisa rubro-negra durante dez anos, ao longo da década de 1980. Com números tão impressionantes quanto os do clube de coração, chama a atenção de qualquer um pela quantidade de gols: durante toda a passagem pelo pior time do mundo, Mauro Shampoo marcou exatamente um. Sim, isso mesmo. O atacante jogou durante dez anos e marcou um único gol. Foi o que abriu o placar num jogo contra Ferroviário do Recife, que terminou vencendo a partida por 8X1. Mas pouco importa o resultado, a história já estava feita, Mauro estava eternizado.
"Para mim, esse gol isolado de Mauro Shampoo tem, para a história do futebol, uma dimensão lendária comparável ao milésimo gol de Pelé. Dez anos de carreira jogando no ataque e marcando um mísero tento, cristalino, legítimo, épico, que concentrou em um instante isolado toda a paixão que a bola pode despertar. Logo após marcar o gol, Shampoo declarou ter realizado a obra de sua vida e concretizado seu maior sonho. Ele é, por isso, um sujeito que atingiu a plenitude", escreve o historiador Luiz Antonio Simas em "Ode a Mauro Shampoo e Outras Histórias da Várzea".
Publicado pela Mórula, o livro é tão belo e surpreendente quanto o gol de bicicleta plantando bananeira feito por Leônidas da Selva – sim, da Selva, jogador do América, não confundir com o da Silva -, que, numa excursão pela Turquia, tropeçou ao tentar alcançar um cruzamento, plantou uma bananeira para não se estatelar no chão e acabou acertando a bola com o calcanhar. Na visão de Simas, a várzea não se resume aos campinhos de terra, mas é qualquer lugar onde "o futebol inventa, margeando modestos ribeirões, a vida". É assim que traz histórias como a epopeia do Santa Cruz pela Amazônia em 1943, as brigas do ex-juiz brucutu Mário Vianna e a inusitada escolha do nome do Treze de Campina Grande.
Mas voltemos a Mauro Shampoo, nosso herói do dia. Simas dá ao leitor uma ideia de como o gol histórico e solitário foi celebrado: "Dizem os que testemunharam o feito histórico que nunca na história do futebol um gol foi comemorado com a euforia do tento de Mauro Shampoo. A vibração do centroavante e da equipe foi tanta que fez a comemoração do gol de Jairzinho, no lendário Brasil e Inglaterra da Copa de 1970, parecer algo tão vibrante quanto uma procissão de Corpus Christi no interior de Minas Gerais".
Mauro Shampoo é único, mas seria ótimo se tivéssemos um Mauro Shampoo da vida em campo num jogo como o de hoje, alguém com chances de protagonizar uma história tão mágica quanto essa. Um Mauro Shampoo em campo tem potencial para abrilhantar qualquer partida, fazer com que qualquer pelada possa se tornar inesquecível, transformar até Rússia X Arábia Saudita em um jogo com dimensões épicas.
*
Deixo aqui um bonito trecho da introdução de "Ode a Mauro Shampoo e Outras Histórias da Várzea", onde Simas, autor também do interessante "Coisas Nossas" (José Olympio) e um dos destaques da última Flip, fala sobre seu modo de encarar as histórias que eterniza:
"Os textos deste livro passam ao largo da análise sociológica ou do rigor histórico. Eles foram escritos com a duvidosa categoria de um peladeiro convicto que mais tomou frangos do que fez golaços. A irrelevância do futebol das várzeas, a comovente ruindade dos perebas, a epopeia silenciosa dos derrotados, dos fracassados, dos frangueiros, dos frequentadores das arquibancadas precárias de madeira e cimento, traçam certo painel afetuoso sobre um Brasil que me interessa.
[…]
A minha pátria é um gole de cerveja para comemorar um gol sem importância, coisa capaz de aconchegar um homem na sua aldeia quando tudo mais lhe parece vertigem de um mundo desencantado".
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