Autobiografia de Jô Soares é um desfile de boas histórias; veja algumas
Lançado há pouco pela Companhia das Letras, "O Livro de Jô – Uma Autobiografia Desautorizada", primeiro de dois volumes sobre a vida de Jô Soares, que contou com a ajuda do jornalista Matinas Suzuki Jr. na empreitada, é um apanhado de boas histórias. E isso é um grande acerto. Se é ótimo ouvir Jô contando passagens marcantes que vivenciou, também é agradável o tom que a dupla de autores empregou na escrita da obra.
Ao longo do calhamaço de quase 500 páginas, o leitor tem contato não apenas com a vida do humorista, ator e apresentador, mas também presencia muito dos bastidores do teatro e do início da televisão no Brasil. Além disso, as memórias de Jô contemplam muitos causos protagonizados por terceiros, a começar por sua mãe, apelidada de Mêcha, talvez a pessoa que mais tenha lhe influenciado – da família, os momentos com o tio Kanela, um dos principais nomes do basquete brasileiro, são as melhores. Pelas ainda desfilam colossos como Nelson Rodrigues, Cacilda Becker, Adoniran Barbosa e mais uma legião de nomes decisivos da cultura nacional no século 20.
Veja alguns trechos que selecionei do volume 1 de "O Livro de Jô":
Kanela brigão
Quando eu tinha oito ou nove anos, tio Kanela me levou para assistir a um jogo de futebol no campo do Botafogo, no antigo estádio da General Severiano. (Lembro-me bem de um atacante daquele time alvinegro, o Ponce de Leon, um ruivo a quem chamavam de Diabo Louro. Ele era famoso por ser boêmio e exímio bailarino, exibindo-se em gafieiras com sapato de duas cores.) De repente, meu tio se vira e me diz: "Olha, você fica sentado aqui quietinho, não se mexe, que eu vou até o outro lado do campo.
Está vendo aquele sujeito que está sentado do outro lado? Eu vou lá bater nele e já volto". Foi lá, brigou com o cara, os dois rolaram pelos degraus da arquibancada, uma confusão tremenda. Depois voltou. Contei a papai o acontecido, e ele imediatamente ligou para o irmão, louco da vida:
— Nunca mais eu deixo você sair com o meu filho.
— Mas, Orlando, não teve nada de mais, foi só uma pequena discussão com um desafeto que estava sentado do outro lado — justificou-se tio Kanela.
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Assédio
Uma tarde, vou com a minha governanta assistir a um filme no pequeno cinema São Carlos, ao lado do Cine Rex, na Cinelândia. Eu tinha seis anos e ainda usava calças curtas. Ela parecia uma indiana, usava óculos e os cabelos presos. Menino fanático por cinema, eu gostava de sentar na segunda fileira. Como a governanta não conseguia enxergar bem tão perto da tela, ela ficava nas fileiras mais ao fundo da sala. Numa sessão, um homem senta na poltrona ao meu lado e começa a passar a mão na minha coxa esquerda. Ele me dizia:
— Puxa mais a sua calcinha pra cima, deixa eu fazer um carinho melhor, puxa sua calça mais pra cima.
Eu sabia que aquela coisa estava errada, não sabia direito por quê. Ele continuava passando a mão, uma coxa roliça de um menino gordo. Aquilo foi me incomodando. Então ele me disse:
— Olha, depois deste filme, a gente pode ir pro Cine Rex, eu conheço o gerente lá, a gente não precisa pagar o ingresso. Tá passando um ótimo filme lá, eu te levo.
Eu respondi:
— Eu estou com a minha governanta, que está sentada aí atrás, preciso perguntar pra ela se posso ir.
Quando ouviu isso, o homem se levantou e desapareceu.
Cheguei em casa e contei a história ao meu pai, que ficou enfurecido como eu nunca tinha visto antes. Ele pegou um revólver que eu nem sabia que tinha e me disse:
— Vamos para a porta do cinema, se você vir o homem, me aponta quem é.
Felizmente o homem não apareceu, ia ser uma tragédia. Tenho certeza de que meu pai atiraria no cara para matar, colérico como estava. Mamãe mandou a governanta embora. Quando penso nesse episódio, vejo o quanto uma criança está exposta ao perigo do assédio sexual. Uma criança pode ser estuprada sem ter a menor noção do que está acontecendo. Felizmente, estudei em colégios internos, estudei no São Bento, e nunca passei por uma situação de constrangimento sexual nesses lugares, e também nunca ouvi ninguém falar que havia passado por uma situação dessas nas escolas em que estudei.
Passaporte de Orson Welles
Voltando à nossa estada em Paris, em 1951. Fomos a um café, cujo nome não recordo, onde estava Orson Welles, no maior porre. Quando ele passou pelo Rio, em 1942, eu tinha apenas quatro anos, não conseguia me lembrar de nada. Mas, dos treze para os catorze anos em Paris, já o admirava, e ao longo da minha vida essa admiração cresceu. Tarde da noite, tomei coragem, fui falar que era fã dele e pedi um autógrafo. Welles olhou para mim e perguntou:
— Brazilian?
Respondi que sim e ele então falou:
— Não vou te dar autógrafo, leva meu passaporte.
E jogou o passaporte em cima da mesa. Agradeci, felicíssimo, e voltei para a nossa mesa, mas meu pai me fez devolver o passaporte.
Eu não queria, e repliquei:
— Amanhã ele vai à embaixada americana e pega outro.
Papai foi firme:
— Meu filho, ele está inteiramente bêbado. Faça o favor de devolver o passaporte.
Eu não tinha como desobedecer, e fui devolver, chateado. Meu pai passou o resto dos dias em Paris me sacaneando:
— Jojô [ele às vezes me chamava assim], ficou chateadinho só porque teve de devolver o passaporte do Orson Welles?
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Enforca ou queima?
Na televisão ao vivo também ocorriam coisas assim. Tem um caso famoso, só que dessa vez não era com a representação de Cristo: foi com uma teledramaturgia sobre a heroína francesa Joana d'Arc. Teatro sendo transmitido ao vivo, e o Manoel Carlos, autor do texto, resolveu fazer o papel de um lanceiro, para controlar sua obra de perto. O lanceiro ficava sempre próximo do bispo Cauchon, o clérigo infame que condena Joana d'Arc a morrer na fogueira. O papel do bispo era vivido pelo excelente ator Oscar Felipe, conhecido por, eventualmente, trocar as suas falas. Aí, na sentença final, o bispo Cauchon disse:
— Joana, fostes condenada. Levem-na para a forca!
Um suor frio corre pelas costas do Maneco. Iam enforcar Joana d'Arc e acabar com o seu texto. Uma revolução histórica. Maneco, ali vestido de lanceiro, com boa presença de espírito aproxima-se do bispo e diz à socapa no seu ouvido:
— Perdão por questionar vossa sentença, monsenhor, mas não seria melhor queimá-la?
— Tens razão, meu caro lanceiro. Queimem-na! Queimem-na!!!
Para aqueles que não conheciam a realidade histórica, quem teve a ideia de mandar Joana d'Arc para a fogueira foi um sacana de um lanceiro.
Sacaneando Golias
Vou confessar uma sacanagem que eu fazia com o Golias: nas cenas em que contracenávamos, eu me posicionava sempre do seu lado esquerdo. Cheio de tiques e manias, ele só gostava de contracenar com atores que ficavam do seu lado direito. Eu quase o enlouquecia, porque me postava de propósito do seu lado esquerdo. Então, o Golias ficava o tempo todo girando em torno de mim para mudar de lado e, assim que ele mudava, eu ia para o seu lado esquerdo novamente. Todo mundo achava que o Ronald Golias improvisava o tempo todo, que ia criando suas falas enquanto o programa ia se desenvolvendo. Nada mais falso. O Golias não improvisava muito, gostava de seguir o script. Claro que, como todo bom comediante, tinha momentos de invenções geniais, mas isso só acontecia porque estava sempre seguríssimo no texto. Só entrava em cena com suas falas bem decoradas, firmíssimas. Quando necessário, ele improvisava. Uma das grandes invenções do programa na televisão brasileira era o cenário, que mostrava dois andares da casa dos Trapo. Havia um cano — do tipo desses que se usam na pole dance — por onde se descia do segundo andar para a sala de baixo. Um dia, o cano despencou quando o Golias descia.
Ele não se apertou: virou-se para mim e disse:
— Viu, Gordon? Quase que eu entrei pelo cano…
Passado o susto, a plateia explodiu em risos e aplausos.
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