Sem gasolina? Jean-Luc Godard também viveu esse perrengue no Maio de 68
Em meio ao furdunço que foi o Maio de 1968 na França, o diretor de cinema Jean-Luc Godard, um dos maiores nomes franceses da sétima arte, e a atriz Anne Wiazemsky, então esposa de Godard, ficaram na dúvida se deveriam ir ou não ao Festival de Cannes daquele ano. Mais do que a dificuldade para se locomover de Paris até a cidade no sul da França, a 900 quilômetros da capital, enquanto os transportes começavam a parar, havia a desconfiança de que o famoso evento poderia ser interrompido a qualquer momento.
Anne resolveu arriscar e rumou para Cannes. Godard preferiu inicialmente permanecer na capital para que não deixasse de marcar presença nas manifestações. O momento francês era de caos: "não havia mais aviões, nem trens, nem transporte público nas cidades, pilhas de lixo começavam a se acumular nas calçadas". Contudo, após um telefonema de François Truffaut, outro gigante do cinema, Godard foi convencido de que deveria viajar até a cidade litorânea apenas para participar do momento de interrupção do festival. Só que havia um problema: onde arrumar gasolina para abastecer o carro e realizar a viagem?
Em "Um Ano Depois", livro de memórias publicado originalmente em 2015 e que acaba de sair no Brasil pela Todavia, Anne não revela como Godard conseguiu o combustível, mas o fato é que o diretor deu um jeito de viajar até Cannes, encontrou sua companheira no sul da França e logo estava enrascado de novo: como conseguiriam gasolina para retornar a Paris agora? Foi preciso certo esforço para que achassem um motorista com boa rede de contatos: abasteceriam o veículo na casa de amigos do condutor que viviam em cidades pelo caminho e cujos carros ainda não estavam com os tanques completamente vazios. E, ao longo da viagem viagem, ainda precisaram lidar com diversos bloqueios policiais:
"Raríssimos eram os carros que ainda conseguiam gasolina para viajar e aquilo nos tornava suspeitos […]. Mais tarde, ficamos sabendo que barreiras haviam sido instaladas nas diferentes entradas da capital e que era de fato procura por armas que justificava todas aquelas buscas", registra a atriz.
Godard contra a polícia
Dialogando de maneira surpreendente com o Brasil da última semana, "Um Ano Depois" é um excelente registro sobre um dos momentos políticos mais importantes do século 20: o Maio de 68. Na ocasião, protestos que começaram com estudantes foram abraçados por diversas categorias de profissionais franceses – o pessoal do transporte, por exemplo. Estima-se que em certo momento as manifestações e a greve geral mobilizaram cerca de 8 milhões de pessoas, mais de 15% da população do país na época.
O principal mérito de "Um Ano Depois" é jogar luz aos eventos marcantes não apenas pelo prisma histórico, mas pela perspectiva de um casal que estava no epicentro dos acontecimentos, longe de conseguir compreender tudo o que se passava e enxergar as proporções principalmente simbólicas que os atos ganhariam com o passar dos anos. E não era um casal qualquer.
Anne havia acabado de protagonizar "A Chinesa", filme que retrata um grupo revolucionário de jovens maoistas. Tido como profético, o longa foi lançado em 1967 e alçou seu diretor, justamente Jean-Luc Godard, ao posto de ícone da esquerda francesa, alguém que, de certa forma, conseguira captar o sentimento geral que eclodiria no Maio de 68.
As memórias de Anne alternam entre a macro-história da qual eram parte e a micro-história cara a qualquer casal: se durante a tarde bradavam contra o sistema em protestos violentamente reprimidos pela polícia, à noite precisavam se preocupar com o jantar ou acolher um incômodo amigo que não tinha onde dormir. Nesse jogo entre o momento caótico e as miudezas cotidianas, é simbólica a cena na qual a atriz, sem ter transporte para se locomover pela cidade, compra um par de patins e passa a usá-lo para ir de um canto a outro de Paris. Quando Godard e seus colegas veem Anne sobre rodinhas, prontamente a repudiam: não era aquilo que esperavam de uma revolucionária! Ela, desencanada, dá pouca bola às críticas e depois ouve alguém dizer algo como "eu queria fazer o mesmo, mas não quero que falem mal de mim também".
Ao longo do livro, aliás, Godard, então com 37 anos, é pintado como uma espécie de adolescente impulsivo e inconsequente. Um exemplo disso é quando irrompe contra um grupo de policiais próximo à Sorbonne: "Jean-Luc, fascinado, avançou na direção dos policiais, sozinho, punhos fechados na altura do peito para se proteger dos golpes que provocaria em resposta aos seus. Parecia um boxeador de filme noir norte-americano, um samurai de filme japonês. Puxei-o com todas as minhas forças na direção do restaurante, tão assustada pela atitude dele quanto pela dos policiais, estranhamente impassíveis. Jean-Luc se deixou levar, resmungando".
Para quem deseja se sentir como um colega de uma jovem Anne (que comemorou 21 anos em meio aos protestos; faleceria em outubro de 2017) e de Godard durante o Maio de 68 em Paris, "Um Ano Depois" é uma leitura certeira. Certeira e, em certos momentos, estranhamente familiar.
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