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Cristovão Tezza: “O mundo é naturalmente conservador”

Rodrigo Casarin

27/04/2018 10h45

Foto: Guilherme Pupo.

"Economicamente o Brasil é um país arcaico, muito pendurado no Estado", acredita Cristovão Tezza. Durante a entrevista abaixo, no entanto, o escritor logo amplia o olhar para além do sistema econômico nacional. "Você tem bolsões modernos, mas o processo de urbanização brasileiro é engraçado, porque deixou de ser um país rural e virou um país urbano sem que as cabeças acompanhassem essa mudança".

Um dos principais escritores em atividade no país, autor de títulos como "Trapo", "Um Erro Emocional" e "O Filho Eterno", o romance brasileiro mais premiado – e um dos mais respeitados – deste século, Tezza está lançando "A Tirania do Amor" (Todavia). A narrativa é centrada no economista Otávio Espinhosa, homem que acredita piamente nos números, é a favor do liberalismo econômico e tem convicções de direita raras de se encontrar em um protagonista de nossa literatura contemporânea.

Em crise no casamento, Espinhosa pensa em tirar o sexo de sua vida. Com relação aos filhos, precisa se entender com um garoto rebelde, uma caricatura de esquerdista – uma pessoa com "sabedoria de um escoteiro" e "fúria de um jacobino" -, e com uma garota já bem mais centrada. Tem certeza de que será demitido do trabalho e precisa lidar com dois fatos importantes de seu passado: ter sido um sucesso como escritor de autoajuda, ainda que camuflado por trás de um pseudônimo, e ter escrito uma tese que jamais seria aprovada na banca de seu doutorado.

Enquanto Espinhosa está em parafuso, o próprio Brasil derrapa no lamaçal onde está atolado. Eis um trecho como exemplo: "Até esse idiota chegou à presidência da República, como exclamou o novato logo no primeiro dia querendo ser engraçado e desabando no mesmo silêncio constrangedor de sempre, ele não se emenda, ao que o Tavares rebateu, Esse idiota? Até ela chegou, isso sim foi um milagre, e nós, nada, só pastando aqui! Agora sim, risadas estrondosas de descarrego, as coisas andavam tensas".

Na conversa que tive com Tezza, a moeda foi um dos assuntos. "O dinheiro é um elemento civilizatório fundamental", crê o autor, que ainda falou sobre uma certa virtude que a esquerda passou a ter após o Golpe de 64 – "[durante a ditadura] não havia muito escape, então criou-se a ideia de que a esquerda é uma qualidade moral" – e do conservadorismo que a tudo permeia: "O mundo é naturalmente conservador, as pessoas são conservadoras, o dia a dia é conservador, isso por uma questão de sobrevivência. A contestação é um processo de quebra de parâmetro".

Por que contar essa história?

A primeira ideia que eu tinha era brincar com um sujeito que escreve autoajuda e abandona a carreira de economista para abrir um espaço onde daria aulas, consultas, e haveria um affair amoroso entre ele e uma aluna. Como é possível perceber, isso desapareceu completamente do livro.

Esse personagem seria um funcionário do Banco Central, em Curitiba. Mas, ao começar a escrever, percebi que tudo precisaria se passar em São Paulo, no centro financeiro do país, na avenida Paulista. Aí já mudou completamente a história e foram entrando as variáveis. A primeira frase, por exemplo, sobre a abstinência sexual, aparece no momento da escrita mesmo.

Como foi construir esse personagem economista?

Sempre brinco que todo brasileiro é um economista, principalmente os que viveram durante a hiperinflação e estavam sempre correndo atrás de fazer logo o mercado e ver onde poderiam investir o dinheiro que sobrava. Mas é claro que também comecei a ler sobre a história do dinheiro, tratados de economia, para dar uma verossimilhança pro personagem, que precisa fazer referências que fiquem de pé. Na tese dele, que não é aprovada no doutorado, tem coisas que eu pensava, aí a gente meio que se esconde no personagem (risos).

O momento político do país está bem representado na obra, ainda que como pano de fundo. É tranquilo para você já colocar na literatura o momento em que estamos vivendo?

Acho que minha literatura foi encontrando um sentido de voz própria. O primeiro livro que escrevi com um registro realista foi o "Trapo", onde trato de Curitiba, registro questões culturais. Já no "O Fantasma da Infância" aparece indiretamente o período Collor. Em "Uma Noite em Curitiba" há uma repensada do que foi o golpe de 64… Então, nunca tive medo de enfrentar, mas a situação foi ficando mais próxima, mais candente.

"A Tradutora" nasceu como uma brincadeira, com a ideia de usar a Copa do Mundo, o fato de Curitiba ser cidade-sede com a arena do Atlético Paranaense (eu sempre dou um jeito de botar o Atlético Paranaense na conversa, risos), e de usar uma personagem que já tive. Não tenho medo de que fique datado, é só um pano de fundo. Mesma coisa do Otávio Espinhosa, que está num dia não especificado de 2017 e junta diferentes fatos daquele ano.

"A única coisa que, de fato, une o banqueiro ao mendigo, que os coloca no mesmo barco mental, é o valor social do dinheiro", acredita o personagem. E você, acredita nisso? Também escondeu seu pensamento no personagem aqui?

Sim, eu acredito nisso. O dinheiro é um elemento civilizatório fundamental, nasceu com a escrita. As teses modernas sobre a origem do dinheiro não são sobre a teoria do escambo. Não há nenhuma referência ao escambo na "Ilíada", por exemplo. Ali eles viviam numa vida comunitária, era outra forma de organização. O dinheiro é uma abstração social que permite a organização do estado moderno, é um acordo tácito de que aquele pedaço de papel ou pedaço de ouro vale xis. Enquanto todos acreditam nisso, o dinheiro é um elemento de coesão social. Quando desacreditam, há o pânico e a destruição da economia do país.

Por outro lado, muitas coisas negativas acabam acontecendo motivadas pelo dinheiro, não?

Aí você entra na questão da desigualdade social, por exemplo, que conhecemos muito bem. Mas eu falava da ideia do dinheiro como tecnologia. Agora, sociedades injustas criam grandes concentrações de dinheiro em poucas mãos, mas não é culpa do objeto, é das pessoas. Não é eliminando o objeto que você resolve o problema. Aliás, quando você destrói a moeda, provoca uma ruína monumental, como aconteceu na Rússia logo após a Revolução ou na Venezuela agora.

No romance, a partir da leitura de um livro de Eça de Queirós, a filha do Otávio pergunta se ele mataria um mandarim qualquer em troca de ter todo o dinheiro que quisesse. Ele nem saberia qual mandarim morreria, não veria a cena, não precisaria fazer nada, apenas aceitar a condição para ficar rico. Independente da resposta dele, e você, mataria o mandarim?

Não, jamais. Uma das questões centrais do livro é essa: a ética do ponto de vista moral. Se você não tem o pressuposto de que você não pode matar, aí, como diria Dostoiévski, tudo é permitido. Você não pode submeter esse princípio básico a uma ideologia qualquer, mesmo que haja a promessa de um bem futuro. O "não matarás", mesmo que você seja ateu, sem o apelo bíblico, é um pressuposto ético, um ponto de partida.

O Otávio é um cara de direita com grande tara pelo dinheiro e pelos números. É um personagem raro de se encontrar em nossos livros e com uma ideologia diferente da ideologia de parte considerável do meio literário. Acha que isso pode lhe trazer problemas, pode enviesar a leitura de muita gente?

Essa é uma questão. Primeiro que o Brasil tem uma intelectualidade amplamente dominante de esquerda. Todos os meios de transmissão de cultura, informação e opinião são predominantemente de esquerda. Essa esquerda foi de certa forma fomentada pela ditadura militar, que criou uma espécie de imperativo ético de você ser de esquerda. Eu já fui de esquerda. Fui um adolescente criado na ditadura e lia tudo o que um sujeito de esquerda e contestador lia, fui formado nessa atmosfera. Ali não havia muito escape, então criou-se a ideia de que a esquerda é uma qualidade moral. E é uma esquerda estatizante, que gosta do estado, que acha que precisa aparelhá-lo para promover justiça social e etc.

Isso é muito forte no Brasil. Depois do Fernando Henrique, é difícil um governo que se eleja no Brasil sem ter um pé na esquerda. Sem isso, é difícil conseguir um apoio da classe média que é decisiva. Toda uma geração que se dividiu depois no PSDB, que foi mais pro centro, o no PT, que foi mais pro lado do sindicato, era de esquerda.

Depois de "A Tradutora", senti em alguns artigos que parte da esquerda ou da intelectualidade passou a me caçar. Uma vez escrevi um artigo sobre o impeachment da Dilma que gerou uma reação muito forte, muito agressiva, aquilo me assustou. Ninguém sabe que sou um sujeito com 30 anos na literatura, que tenho alguma bagagem? Não podem tratar no nível das ideias, precisam ser violentos?

E hoje você se encaixa na esquerda, na direita…? Acha que isso continua fazendo sentido?

Não, não faz mais sentido isso. Essa divisão é aleatória, é conceitualmente frágil. Se ser de esquerda é defender a diversidade sexual, a autonomia dos indivíduos, sou de esquerda. Se disser que é defender o Banco do Brasil, o BNDS, os Correiros, sou de direita. Acho que tem que privatizar tudo isso. Do ponto de vista cultural, sou um sujeito de esquerda com bandeiras libertárias. Sou bastante liberal em economia. Economicamente o Brasil é um país arcaico, muito pendurado no Estado.

Só economicamente?

Não, não. Você tem bolsões modernos, mas o processo de urbanização brasileiro é engraçado, porque deixou de ser um país rural e virou um país urbano sem que as cabeças acompanhassem essa mudança.

"Até o 10, ele explicava à filha criança, canetas coloridas à mão, os números primos são exoticamente harmônicos, até simpáticos, um de cada cor, 3, 5, 7. Depois são desajeitados, 11, 13, 17, 19 – bem, o 13 tem um certo atrativo engraçado pela vinculação ao mau agouro". Pelo momento em que vivemos e pelo contexto da obra, essa parte sobre o 13 e o mau agouro permite múltiplas interpretações, não?

Risos. Eu não tinha pensando nisso, não me passou pela cabeça. Se você é adepto do ato falho… Mas acho que não, o personagem é muito ligado aos números mesmo, seria procurar chifre na cabeça de economista.

O filho, esquerdista ferrenho, daqueles cheios de chavões na ponta da língua, é extremamente caricato, o próprio pai assume isso. Por que essa opção?

O mundo é naturalmente conservador, as pessoas são conservadoras, o dia a dia é conservador, isso por uma questão de sobrevivência. A contestação é um processo de quebra de parâmetro. Que a esquerda usa o chavão como arma política, isso eu sei. Sei que um chavão bem colocado é uma arma política. Em momentos de crise, os chavões de todos os lados sobem, viram uma arma. Mas ali, ao mesmo tempo que tem tudo isso, tem também uma questão afetiva do pai com o filho, uma preocupação

Dentre as caricaturas do filho, ele vai pedir dinheiro pro pai para que possa ocupar uma escola para tentar mudar o mundo. Contas para pagar são os maiores inimigos de qualquer idealismo?

Isso com certeza, principalmente para jovens adolescentes. Entre os 17 e 25 anos, há um certo desejo de negar a realidade pragmática do mundo, sei por que vivi tudo isso, talvez com outra pauta, mais hippie, muito mais comportamental do que ideológica.

Você já publicou pela Rocco e estava há bastante tempo na Record, mas "A Tirania do Amor" sai pela Todavia. Por que essa mudança?

Vivo de livros e eventos literários. Acho que a literatura virou quase um nicho de mercado e cada livro tem uma certa cara. Então, meu livro de poemas, "Eu, Prosador, Me Confesso", saiu com uma edição artesanal de 300 exemplares pela Quelônio. Para este romance achei que era hora de dar uma chacoalhada e ir para uma editora menor, mais focada em literatura brasileira. Lançarei um livro de ensaios pela Dublinenses logo mais e em agosto a Record vai lançar uma edição crítica dos 30 anos do "Trapo", que é o segundo livro que mais vendi. Ou seja, quatro editoras diferentes para quatro livros diferentes. Isso reflete um pouco do meu momento profissional.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.