70 anos após sua morte, por que George Orwell se agiganta cada vez mais?
Rodrigo Casarin
21/01/2020 09h58
Há sete décadas morria George Orwell. Ele nos deixou aos 46 anos por conta de uma tuberculose. Meses antes do último respiro, o escritor, já aclamado por títulos como "A Revolução dos Bichos", lançava seu livro mais importante: "1984", distopia que nos últimos anos voltou a servir de chave para tentarmos compreender ou ficarmos alertas com os rumos do mundo – escrevi a respeito no ano passado.
A ascensão de Donald Trump ao governo dos Estados Unidos (presidência conquistada no final de 2016) levou o título de volta a listas dos mais vendidos em todo o planeta. O crescimento de outros líderes autoritários de extrema-direita fez com que a obra permanecesse em evidência desde então. No Brasil de Bolsonaro, por exemplo, "1984" liderou as vendas do estande da Companha das Letras na última Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Um ano antes, em 2018, a obra também tinha lugar cativo entre os mais comercializados da editora na Bienal do Livro de São Paulo, normalmente fazendo ombros com "A Revolução dos Bichos".
Neste final de década, tornou-se corriqueiro ouvirmos termos como "orwelliano", "duplipensar", "novafala" e "grande irmão" (indo além do programa televisivo) ou comparações com o que se passou naquela fazenda dominada pelos porcos. Já não seria pouco um escritor seguir atual 70 anos após a sua morte por essas contribuições e por seus dois livros mais famosos. Orwell, no entanto, tem ainda mais a acrescentar aos debates contemporâneos. Cruzando a história com a atualidade, o britânico se agiganta por conta de características de sua obra e de elementos biográficos.
A época: Orwell nasceu em 1903 e morreu em 1950. Viveu ao longo da conturbadíssima primeira metade do século 20 e residiu durante a maior parte do tempo na Europa. Foi contemporâneo a duas guerras mundiais, à Revolução Comunista, ao estabelecimento da União Soviética, à ascensão do nazismo e do fascismo, ao Holocausto, à queda de Hitler e Mussolini, à sobrevivência do franquismo e do salazarismo…. Não há como dissociar sua obra – e os temas que aborda em sua literatura – de tudo o que acompanhou.
A vida: Orwell nasceu em Bengala, no sudeste asiático, então parte do Império Britânico. Mudou-se para Sussex, na Inglaterra, em 1911. De família sem muita grana, comemorou quado conseguiu bolsa para estudar em uma das principais escolas da região. Imperialismo e desigualdade social viriam a ser assuntos recorrentes em seus escritos, temas urgentes também em nossos dias.
Atuando para a Coroa, foi policial na região que hoje pertence a Myanmar (da experiência que nasceu seu romance de estreia, "Dias na Birmânia"). Sentiu no estômago a miséria das ruas de grandes cidades, o que deu origem a "Na Pior em Paris e Londres", certamente o mais famoso dos seus livros de não ficção, área na qual também brilha.
Essa pegada de vivenciar aquilo sobre o que viria a escrever que o levou a comer pó em carvoarias e a se embrenhar em campos de lúpulo, constatando a dureza da vida dos trabalhadores numa época em que direitos trabalhistas ainda eram escassos – olha aí outro assunto que nos é caro. Desses mergulhos na realidade que surgem relatos presentes em títulos como "O Caminho Para Wigan Pier" e "Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios".
As ideias: essas experiências forjaram a maneira de Orwell interpretar e se posicionar perante o mundo. Era um homem progressista, favorável ao socialismo principalmente como via para aplacar a opressão aos mais pobres e que não abria mão da democracia. Chegou a lutar na Guerra Civil Espanhola por um grupo marxista, experiência retratada em "Homenagem a Catalunha", relato que merece uma nova edição no Brasil há tempos. Viveu e criticou duramente as contradições da esquerda, preocupando-se em fortalecer o seu lado da trincheira ideológica, não apenas em apedrejar aqueles que lhe eram completamente contrários – escrevi sobre isso na resenha do valioso "O que é o Fascismo? e Outros Ensaios". A honestidade intelectual é um dos elementos mais admiráveis dos textos de Orwell.
A crítica aos regimes totalitários está no centro de seus dois livros mais famosos: "1984" e "A Revolução dos Bichos" (deste, aproveito para indicar a linda adaptação em quadrinhos feita por Odyr). Muitos encaram as obras como ataques ao comunismo e aos soviéticos. Limitá-las dessa forma é comodismo ou sacanagem. Sim, a carapuça serve à comunista União Soviética, mas não apenas. Orwell sempre desconfiou dos poderosos. Basta olhar para outros regimes totalitários da história para notar que as histórias são representações que se aplicam a qualquer sociedade regida sob a truculência de um ditador (ou, em outra escala, de um aspirante a ditador), independente de seu viés ideológico.
O posicionamento: George Orwell tinha mensagens para passar, como alertar sobre a maneira do totalitarismo se estabelecer e o processo de desumanização e embrutecimento geral que o acompanha, e o fazia por meio de seus textos publicados em revistas, jornais ou livros. O escritor assumia a vontade de unir suas intenções políticas e artísticas numa coisa só. O modo como sua obra continua sendo discutida em contraste com os acontecimentos políticos do presente é uma boa prova de que o britânico foi feliz em seu intento.
A forma: para alguns críticos, como Harold Bloom, os livros de Orwell eram simples demais, povoados por personagens um tanto rasos e com linguagem aquém do que encontramos nos monumentos da literatura. Concordo em partes com Bloom, mas a linguagem sem grandes malabarismos é um dos segredos para que o autor de "1984" seja tão lido. Já a alegada simplicidade de seus personagens contrasta com a complexidade dos temas tratados, o que era a principal preocupação do escritor.
Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, Youtube e Spotify.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.