Topo

Gosta mesmo de música? Então leia as crônicas "afetivas" de Arthur Dapieve

Rodrigo Casarin

15/10/2019 08h20

Tenho uma frustração na vida: nunca assisti ao show da Legião Urbana com Renato Russo à frente do grupo. Não pude fazer muito a respeito. Quando Renato, Dado e Bonfá subiram juntos pela última vez num palco, em 1995, eu tinha sete anos e nem sei o que escutava na época.

Em todo caso, logo me apaixonei pela banda de Brasília. Cresci ouvindo incansavelmente todos seus álbuns e também colecionando relatos de pessoas que acompanharam de perto a trajetória da Legião, de amigos mais velhos que tinham ido a shows ou que, ao menos, também tiveram a suas vidas impactadas pelas letras de Renato.

Me alimentando de tudo o que, de alguma forma, me ajudava a recriar a trajetória da Legião e do rock nacional dos anos 1980, revisitava frequentemente alguns livros que nunca saíam da minha cabeceira – o acesso à internet era raro e as informações na rede ainda eram parcas, importante lembrar. A edição que tenho de "Dias de Luta – O Rock e o Brasil dos Anos 80", de Ricardo Alexandre, está toda marcada. "Conversações com Renato Russo" era um clássico das leituras aleatórias. "BRock – O Rock Brasileiro dos Anos 80" e "Renato Russo – O Trovador Solitário" também me acompanharam ao longo da juventude.

Esses dois últimos foram escritor por Arthur Dapieve, que se tornou uma espécie de camarada que se comunicava comigo somente por meio da escrita. Cresci tendo grande afeição pelo jornalista. Fiquei muito feliz ao ler o volume de contos "Maracanazo e Outras Histórias" (Alfaguara), publicado há quatro anos, e constatar que o cara manda bem também na ficção. Agora, um novo livro com aquele velho Dapieve, o jornalista que equilibra como poucos crítica, história e paixão, caiu em minhas mãos.

Arthur Dapieve.

Com "Do Rock Ao Clássico – Cem Crônicas Afetivas Sobre Música", em diversos momentos revivi sentimentos de outrora, de quando ficava imensamente feliz ao ler ou ouvir alguém falando bem de Renato, da Legião e de outros artistas que admiro – coisa besta, eu sei, mas faz parte. Um exemplo extra-legionário e de fora dos anos 1980 que me pegou de jeito é o que Dapieve escreve sobre os dois primeiros álbuns dos Los Hermanos, que se tornaram clássicos no seu aparelho de som. Eis o argumento:

"Primeira razão: a ousadia de fazer diferente e, depois, diferente do diferente numa época em que a tônica é fazer mais do mesmo. Los Hermanos era um time que estava vendendo: 300 mil cópias na cola de 'Anna Júlia'. Ainda assim, a banda mexeu nele em Bloco do Eu Sozinho e, sem o peso do sucesso, de novo agora em Ventura. Segunda razão: a qualidade das letras de Marcelo Camelo e de Rodrigo Amarante, os dois vocalistas e guitarristas. Seu que já se criou bom rock em cima de onomatopeias, benção Litthe Richard. Awopbopaloobopawopbamboom! Mas eu me ligo em letras, o que posso fazer? Vivo delas. Estimo uma frase bem torneada, um pensamento original, uma palavra justa".

Evidente, compartilho de tal apreço por letras. A esse respeito, em outro momento Dapieve aponta que "houve uma mudança global que afetou a qualidade do rock feito a partir dos anos 90, aqui ou alhures. Renato Russo, Cazuza, Lobão, Arnaldo Antunes, Herbert, Leoni, Leo Jaime, Frejat, Nando Reis, Humberto Gessinger… Este povo pertencia a uma geração letrada, isto é, na qual a grande fonte de (in)formação ainda eram os livros. Contudo, a televisão foi se impondo e, mais recentemente, cedeu espaço à internet. Tanto uma quanto outra se caracterizam pela dispersão cognitiva, pela lógica não linear. Logo, num reflexo natural, as letras passaram a ser mais fragmentadas, tal qual a perplexidade de se estar no mundo hoje em dia. Não há bem história, início, meio, fim, mas uma sucessão mais ou menos bem-sucedida de momentos ou iluminações".

Trago trechos de crônicas escritas sobre o rock nacional porque é a parte do livro que fala mais diretamente comigo – são bonitos os momentos em que Dapieve lembra de se assombrar com a força de Cassia Eller e de se aliviar por poder deletar obituário de Herbert Vianna. Mas há muito mais na coletânea, feita a partir de crônicas que o autor escreveu para o jornal "O Globo" entre 1993 e 2018: rock internacional (sempre ou quase sempre em inglês, o que é uma pena), black music, MPB, clássicos… Numa rápida passada de olhos pelo índice, encontramos nomes que partem de Kurt Cobain e Amy Winehouse, passam por Roberto Carlos e Jimi Hendrix e chegam a Bach e Mozart.

Ler uma reunião como esta de "Do Rock Ao Clássico" também é uma oportunidade para notarmos como certas percepções podem ir e vir ao longo do tempo. Nesses dias estava pensando em uma parte bem específica de "Índios", da Legião: "Quem me dera ao menos uma vez/ Explicar o que ninguém consegue entender/ Que o que aconteceu ainda está por vir/ E o futuro não é mais como era antigamente". A letra foi escrita na metade dos anos 1980, tal estrofe talvez tenha ficado um tanto sem sentido durante algum tempo, mas voltou a ganhar força e parece falar diretamente para os nossos dias. Há a inegável sensação de que estamos revendo acontecer no país alguns dos capítulos mais lamentáveis do nosso passado e a perspectiva é bem diferente da que tínhamos há oito ou dez anos.

Daí que Dapieve escreve, em crônica de 2000, que uma das canções mais emblemáticas da Plebe Rude havia ficado datada. "Caducou como música de protesto, por exemplo, a sempre ótima 'Censura', também incluída no novo disco: 'A Censura, a Censura/ Única entidade que ninguém censura". A unidade repressora oficial ainda não foi institucionalizada, mas a censura já está de volta, revigorando, de certa forma, a letra da Plebe, outra daquelas bandas que eu adorava ouvir histórias a respeito quando era um adolescente que ficava horas curtindo rock nacional e lendo livros sobre o assunto.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, Youtube e Spotify.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Gosta mesmo de música? Então leia as crônicas "afetivas" de Arthur Dapieve - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.