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A rainha precoce que foi presa no próprio castelo e morreu de forma cruel

Rodrigo Casarin

05/06/2019 10h52

Com apenas seis dias de vida, após a morte de seu pai, Jaime V, Maria Stuart se tornou rainha da Escócia. É isso mesmo que você leu: pouco mais de 144 horas após chegar ao mundo, a pequena que nasceu em 1542 já portava a coroa de um reino secundário na Europa, fortemente influenciado pelo que acontecia na França e na Inglaterra, mas também um bastião do catolicismo numa ilha onde o protestantismo se alastrava. Antes mesmo de saber o significado de palavras como "amor", "interesse" ou "casamento", a mão de Maria já estava prometida a herdeiros de outros reinos. Antes de completar cinco anos, exércitos já batalhavam em seu nome e milhares de guerreiros caíam em sua defesa.

"Esse é o destino fatal de Maria Stuart, estar sempre enredada nesse jogo calculista. Nunca lhe será permitido deixar agir livremente o seu eu; sempre estará prisioneira da política, objeto de diplomacia, brinquedo da ganância estrangeira – ela será apenas rainha, guarda da coroa, aliada ou inimiga", escreve o austríaco Stefan Zweig na biografia "Maria Stuart", publicada aqui no final do ano passado pela José Olympio.

Chama a atenção a força autoral que Zweig emprega em trabalhos do tipo. Não se importando em tascar as prórpias interpretações históricas e a respeito dos personagens em diversos momentos do texto, entrega algo que se aproxima muito mais de um ensaio biográfico do que de uma biografia clássica. No caso de "Maria Stuart", publicado originalmente em 1934, o autor ainda opta por um caminho arriscado: considera os escritos deixados pela antiga rainha, como poemas, testemunhos incontestes do que ela de fato viveu – e do que ela sentia, principalmente –, enquanto outros estudiosos preferem encarar essas peças com mais prudência, talvez ficções baseadas na vida da própria autora.

Após um casamento arranjado quando tinha 16 anos, a escocesa tornou-se nobre também na França. Foi nessa idade que viu alcançar o poder aquela que seria uma espécie de antagonista em sua história: Elizabeth I, sua prima, que chega ao trono inglês por meios polêmicos. Na visão de Zweig, é nesse momento que Maria comete um erro que lhe assombraria para sempre: precisando se posicionar sobre a legitimidade da coroa na cabeça de Elizabeth, a escocesa fica em cima do muro, não manifestando apoio irrestrito, mas também não tratando a inglesa como uma usurpadora – a relação entre as monarcas foi recentemente levada para o cinema no filme "Duas Rainhas", ainda em cartaz em algumas salas pelo Brasil.

"Por uma inabilidade política cometida na infância mais por obstinação política e vaidade do que por reflexão consciente, Maria Stuart transforma a mulher mais poderosa da Europa em sua inimiga irreconciliável. Um verdadeiro soberano pode permitir e tolerar tudo menos isto: que outra pessoa duvide de seu direito de governar", aponta Zweig, um mestre em contar a história de personalidades que podem ser encaradas como figuras-chave para compreendermos a política ao longo da história e, por extensão, em nossos dias. Nesse sentido, "Joseph Fouché – Retrato de um Homem Político" (Zahar) é um livro incontornável, obrigatório para qualquer um que deseja de verdade compreender a mente de um sagaz oportunista disposto a bajular qualquer um que esteja no poder. Mas "Maria Stuart" também tem grandes momentos, como este:

"Os príncipes dos séculos 15 e 16 – com exceção de sua grande adversária Elizabeth – ainda nem pensam em seus povos, mas só no poder pessoal. Reinos são cortados e remendados como roupas, guerra e casamento formam os Estados e não a vontade da nação. Portanto, não tenhamos ilusões sentimentais: Maria Stuart, naquele tempo, estava disposta a trocar a Escócia pela coroa espanhola, inglesa, francesa ou outra qualquer, e provavelmente não teria derramado lágrimas por despedir-se das matas, dos lagos nem dos românticos castelos de sua pátria; pois sua ambição jamais considerou aquele seu pequeno reino senão como trampolim para um objetivo mais alto".

Após o fim do casamento francês, Maria volta à Escócia. Ali pelo começo da década de 1560, ela e Elizabeth eram as mulheres mais cortejadas do mundo, aponta o biógrafo, com reis de toda a Europa desejando suas mãos – e uma oportunidade para expandir seus reinos. Entre relações oportunistas, conspirações, assassinatos, e uma paixão pouco recomendável àqueles que precisam agir muito mais com a razão do que com o coração, Maria se envolve em uma complexa rede de traições e jogos de interesse. Sofre um golpe, é presa no próprio castelo, de onde acaba fugindo, e, numa reviravolta nem tão incomum assim, participa do assassinato de seu segundo marido para, logo em seguida, antes mesmo do corpo do defunto esfriar, casar-se com o carrasco do finado.

Nesse momento da narrativa, Zweig evoca William Shakespeare, contemporâneo de Maria e Elizabeth, para traçar paralelos entre a história e a arte. "A semelhança externa da situação com aquela tragédia de Hamlet é indiscutível. Aqui como ali, um rei traiçoeiramente eliminado pelo amante da mulher; aqui como ali, a pressa inadequada com que a viúva corre para o altar com o assassino de seu esposo; aqui como ali, continua agindo o crime que exige mais esforço para ser escondido e negado do que o foi para ser executado", registra. Na sequência, lembra de outro clássico do Bardo. "Mais forte ainda, mais persuasiva para a nossa emoção, é a espantosa analogia de muitas cenas da tragédia escocesa de Shakespeare com a histórica. 'Macbeth' foi baseado, consciente ou inconscientemente, na atmosfera do drama de Maria Stuart; o que acontece literariamente no castelo de Dunsinan, correu de verdade no castelo de Holyrood".

Depois de se casar com o algoz de seu antigo marido, Maria perde a moral e passa a ser rechaçada pelos nobres, pelos sacerdotes e pelo povo. Todos concordam que ela não pode mais seguir como rainha da Escócia. No entanto, sem leis que permitam a qualquer um fazer algo contra a coroa – era mais fácil matar reis e rainhas do que simplesmente depô-los , conchavos e articulações políticas acabam por transformar Maria em uma rainha encarcerada em suas propriedades. "Concedem-lhe todas as comodidades insignificantes, todas as pequenas liberdades, menos aquela, a coisa mais sagrada e importante da vida: ser livre".

Ainda de posse da coroa, tenta fugir para a Inglaterra, confiando que Elizabeth lhe estenderia a mão num momento de dificuldade, como prometera outrora. Porém, já sem um poder real, transforma-se num problema para a inglesa, que, com o passar dos anos, nota que não é possível que duas rainhas vivam em um mesmo país. Para piorar a situação de Maria, as pressões externas durante a Contrarreforma, que intensificou os conflitos entre católicos e protestantes, obrigam a mandatária inglesa a tomar a atitude drástica. "Não se tenta mais decidir pelas artes da diplomacia, ou numa guerra aberta e franca, mas com o punhal desembainhado, com o punhal assassino. Dos dois lados concorda-se com o método: em Madri; o assassinato de Elizabeth é decidido em reunião secreta, e aprovado pelo rei; em Londres, Cecil, Walsingham e Leicester concordam em que é preciso acabar violentamente com Maria Stuart".

Pelo andar da história, fica fácil saber quem levou a melhor. A execução de Maria foi extremamente violenta.

"A morte pelo machado é sempre uma carnificina vulgar e um susto medonho", escreve Zweig. Com a cabeça de Maria no cadafalso, o carrasco desfere o golpe pretensamente fatal, mas erra. Não acerta o pescoço em cheio. A vítima permanece viva, ainda que severamente ferida. O segundo golpe arranca muito sangue, mas ainda não é suficiente para acabar com Maria. Somente a terceira machada que, enfim, separa a cabeça do corpo da antiga rainha da Escócia. Só que o horror não termina aí, relata o biógrafo:

"O carrasco quis pegar a cabeça pelos cabelos para exibi-la, mas agarra apenas a peruca e a cabeça se desprende. Rola como uma bola sangrenta, batendo no chão de tábuas, coberta de sangue, e quando o carrasco a apanha de novo e a levanta – visão espectral –, veem uma mulher velha com cabelo bem curto e branco. Por um momento, o horror da carnificina paralisa os espectadores; ninguém respira, ninguém fala". Maria Stuart tinha 44 anos quando foi decapitada, pratica que se tornaria comum contra membros da realeza dois séculos depois, durante a Revolução Francesa.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.