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Incontáveis estupros e grana na Europa: o livro da travesti Luísa Marilac

Rodrigo Casarin

23/05/2019 10h49

Imagem: Gabriel Cardoso/SBT.

"Alguns dos que me leem nasceram do amor. Outros, do acidente. Outros ainda, do tesão. Eu tenho desgosto de saber que sou filha de um rato. Um serzinho sujo, provavelmente morador de um beco encardido de Minas Gerais, que resolveu fazer barulho demais enquanto meus pais alcançavam o ápice sexual. Minha mãe, Maria, transpirando de prazer ilícito, revirou-se de susto, e o espasmo adiantou o controlado orgasmo do meu pai. E o gozo dele foi morar dentro dela em vez de sujar o chão da perua abandonada que lhes servia de motel".

É dessa forma que Luísa Marilac abre "Eu, Travesti", livro de memórias que acaba de sair pela Record. Na obra, conta que a única coisa que seu pai fez por ela foi mesmo "gozar na hora errada". Já a mãe fazia o tipo durona, que tentava resolver tudo na base da truculência. Aos cinco anos, quando Luísa contou à progenitora que havia sido estuprada, por exemplo, recebeu como resposta gritos e algumas porradas. Toda sua formação sexual foi acompanhada de violência, aliás: consecutivamente assediada e intimidada na escola, estuprada e ameaçada por um traficante…

"Se for dar nome de estupro a tudo que as meninas bem-cuidadas de classe média chamam de violência sexual, já fui estuprada mais vezes do que posso contar. Por homens adultos que me buscavam na porta da escola primária e me comiam escondidos de suas esposas. Por estudantes que empurravam os pintos na minha boca no banheiro sem fazer caso ou pergunta e nem esperavam o gozo esfriar antes de me ameaçarem de morte caso eu contasse a alguém. Por muitos desses. Sobrevivi porque em todos os casos fui capaz de encontrar algum tipo de prazer e me refugiar nele. 'Prazer' eu chamei pra mim todas aquelas violências. Meu Deus!", reflete.

Hoje uma webcelebridade que luta contra o preconceito aos transexuais, Luísa escreveu "Eu, Travesti" em parceria com a jornalista Nana Queiroz, também autora do impactante e imprescindível "Presos que Menstruam" e de "Você Já É Feminista". Longe de ser um primor narrativo, o lançamento é daqueles que valem pela história em si e por apresentar ao leitor parte do universo trans – com direito a um miniglossário de termos do Pajubá, dialeto que ficou famoso após aparecer na última prova do Enem.

Luísa se assumiu transexual aos 17 anos e encontrou um mundo no qual o único destino possível parecia mesmo ser a prostituição. Para se moldar, fez dívidas com cafetinas e deixou que carniceiras lhe injetassem 22 litros de silicone industrial. "O corpo é a peça de arte da travesti. É nosso pedaço de pedra-sabão, nossa tela em branco. É nele que expressamos nossa visão de beleza, de transgressão às normas, nossa leitura do feminino", argumenta. Na luta por esse ideal, viu colegas ficaram deformadas e morrerem na mesa de cirurgia improvisada.

A morte, aliás, rondou Luísa ao longo de toda carreira. Foram muitas as prostitutas parceiras que ficaram pelo caminho afundadas em drogas, vitimadas pela AIDS, levadas a cometer suicídio ou brutalmente assassinadas. Foi este o caso da colega trans de apenas quinze anos que tinha "rosto de querubim em face humana" e terminou espancada e baleada na beira de uma estrada – "a mochilinha de ursinho de pelúcia me lembrava que ela era ainda uma menina", registra ao recordar da cena do crime. Certa vez, em um boteco, ao ser atacada por um rapaz armado com uma faca, a coautora só sobreviveu por conta de sua força – "derrubei cinco homens no braço".

Luísa nasceu em Minas Gerais, iniciou-se na prostituição quando morava em Guarulhos e ganhou projeção trabalhando na Europa, onde desembarcou com cerca de vinte anos como vítima de tráfico sexual. Passou por diversos perrengues e chegou a ficar presa durante três meses no banheiro de uma delegacia na Hungria. Por lá, no entanto, também conseguiu levantar uma grana. A atuação em 26 filmes pornôs rendeu bem e botou a mão num dinheiro alto quando, na Itália, começou a se envolver com gente rica e poderosa – um jogador de futebol da seleção italiana mantido no anonimato, por exemplo, ou um cliente que ostentava fotos ao lado de Berlusconi na parede de casa e que chegou a lhe recompensar com 15 mil euros e um cartão de crédito com sua senha.

Já na Espanha, onde transexuais são difíceis de encontrar, conta, era vista como uma raridade, por isso faturava bem mais do que as mulheres cis. No entanto, do mesmo jeito que ganhava dinheiro, via a grana indo embora. Foram muitas as vezes que Luísa foi vítima de extorsões, golpes e chantagens. Ao longo de suas memórias, interesseiros e oportunistas brotam aos montes e os chupins da família nunca desaparecem.

Como era de se esperar, muito dos hábitos sexuais daqueles que procuram pelo trabalho de transexuais também são revelados ao longo do livro. Luísa estima que a cada dez homens que foram seus clientes, oito desejavam ser passivos. "A heterossexualidade pura é uma fachada que acaba no escurinho com uma travesti", garante.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.