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Símbolo do racismo nos EUA, ele usou uma faca para virar herói de guerra

Rodrigo Casarin

13/03/2019 10h31

A necessidade de enviar cada vez mais homens para o front que forçou os Estados Unidos a mandar soldados negros para a Primeira Guerra Mundial. Até então, estes eram plenamente ignorados pelos oficiais, que, pegos de surpresa, deram uma formação vexatória aos afro-americanos, com direito a pás e vassouras fazendo as vezes de armas de verdade. Despacharam-nos para o campo de batalha onde, sob desconfiança de seus colegas brancos, normalmente eram escalados para retirar cargas de navios, cavar trincheiras e enterrar os mortos após confrontos com exércitos inimigos.

Integrante de uma tropa que ficou sob o comando dos franceses, Henry Johnson, no entanto, traçou uma história que embasbacou até mesmo os militares racistas. Numa noite de maio de 1918, o posto que protegia junto com um parceiro foi atacado por alemães. De cara, feriram gravemente seu colega, obrigando Johnson a dar seu jeito para cumprir as ordens a ele delegadas: manter a posição a qualquer custo, de preferência preservando a própria vida e a vida do companheiro.

Primeiro utilizando seu rifle, depois com granadas e um revólver e, enfim, distribuindo facadas para tudo que é lado, Johnson foi bem, muito bem – dentro do que é ir bem para alguém que está no meio de uma guerra. Matou mais de vinte inimigos, afugentou o restante e, por mais que acabasse com o corpo capengando pelos ferimentos que recebeu, cumpriu todos os objetivos.

A trajetória de Johnson é uma das muitas presentes em "A Era do Cometa – O Fim da Primeira Guerra e o Limiar de um Novo Mundo", do historiador alemão Daniel Schönpflug, publicado no Brasil pela Todavia. Trata-se de uma das abordagens mais originais que já vi em um livro sobre alguma das grandes guerras. Ao longo da obra, Schönpflug resgata a história de diversas pessoas que viveram durante o conflito, iniciado em 1914 após o assassinato do arquiduque austríaco e que durou até 1918, para mostrar as consequências imediatas daquela carnificina para o mundo.

"Explosão", pintado por George Grosz em 1917, um dos quadros que ilustram o livro de Daniel Schönpflug.

Encontramos pelas páginas de Schönpflug não apenas heróis de guerra, oficiais de alta patente ou mandatários dos países envolvidos no conflito, mas também soldados que se transformaram em músicos, artistas que seguiam com o próprio trabalho, como Virginia Woolf e Marcel Duchamp, e personalidades que travavam suas próprias lutas enquanto o bicho pegava na Europa, como Mahatma Gandhi. Com essas histórias fragmentadas ao longo do livro – formato que torna a leitura cansativa em alguns momentos –, um dos méritos de Schönpflug é mostrar como vidas continuam sendo tocadas e causas alheias ao grande conflito seguem em voga mesmo durante um evento como a Primeira Guerra, contrariando a impressão de que o mundo inteiro fica parado enquanto a carnificina acontece.

Mas voltemos a Henry Johnson, que se tornou "o primeiro herói de guerra negro estadunidense", recorda Schönpflug. O reconhecimento veio por meio dos oficiais franceses, que lhe entregaram a prestigiosa medalha Croix de Guerre em 1918; somente em 2015 que os norte-americanos corrigiriam um "descaso" histórico e concederiam postumamente a Medalha de Honra a Johnson. Seu feito no front ao menos foi imediatamente reverberado pela opinião pública dos Estados Unidos. A história heroica circulou amplamente por jornais e, quando voltou ao país natal, o militar foi recebido com uma festa apoteótica pelas ruas de Nova York. Só que as questões raciais num lugar que tomaria medidas concretas contra a segregação somente décadas mais tarde persistiam. "Um agente lhe oferece 10 mil dólares por uma série de conferências pelo país. Mas Johnson recusa o convite. Ele não confia num agente branco", registra Schönpflug.

Certa hora, entretanto, convencem Johnson a contar para seletas plateias tudo aquilo que passou. Só que em St. Louis, em 1919, o herói mostra que não está disposto a contemporizar a realidade na qual cresceu e ainda vive. Ao subir ao palco, mostra como o racismo pontua toda sua trajetória: "Já nas primeiras frases fica claro para todos que Johnson não tem, de maneira nenhuma, a intenção de afinar seu discurso com o tom da harmonia racial [pretendido pelos contratantes]. Ele quer falar abertamente da guerra. Assim, começa fazendo uma descrição de sua experiência, desde o momento da convocação: a formação ruim, a falta de equipamentos, o desprezo dos soldados brancos, que se recusam a ficar ao lado de negros nas trincheiras", escreve Schönpflug.

Segundo o autor, Johnson afirma que tanto ele quanto seus colegas eram tratados como homens de segunda categoria, destinados apenas a funções subalternas ou a missões perigosas demais para os soldados brancos. "Mande os pretos para o front, assim sobrarão menos deles em Nova York", garante ter ouvido da boca de um oficial. "Ele vê a si mesmo como um herói, mas não quer ser o falso herói dos brancos, e duvida que o país lhe agradecerá por seus sacrifícios: 'Se eu fosse branco, agora já seria governador do estado de Nova York', lança ele sobre a plateia. Quanto mais ele fala, mais cresce o desconforto do público", segue Schönpflug.

O que era para ser um encontro festivo, acaba virando um momento de inegável desagrado àqueles que preferiam não escutar tantas verdades sendo ditas pelo herói da vez. "Primeiro ouvem-se murmúrios, depois interferências e apupos. Quando Johnson termina, o público expressa sua sonora indignação. Os dignatários da cidade ali reunidos e os sacerdotes tentam tranquilizar a multidão. Eles pedem desculpas pelo palestrante irado e procuram fazem o papel de conciliadores". Se quem estava no auditório passou a ver Johnson como um traidor, a multidão que o aguardava do lado de fora o recebeu com "aplausos trovejantes e júbilo".

No dia seguinte, Johnson seria acusado de ter desencadeado distúrbios raciais em Saint Louis; aquela seria sua última grande aparição pública. Comprovando que suas palavras não eram vazias, nem o fato de ser um veterano e herói de guerra lhe garantiu algum conforto. Passou quase toda a década de 1920 batalhando por trocados, afogando-se no álcool e cada vez mais esquecido. Apesar dos problemas físicos infligidos pelos conflitos, só foi receber alguma pensão do governo pouco antes da sua morte – e porque estava severamente doente, não pelo que fez em terras europeias. Morreu em 1929, aos 36 anos.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.