Para onde a escolha pela ignorância irá nos levar?
Rodrigo Casarin
22/02/2019 10h32
Há poucos dias, uma imagem vinda de Nova Zemlaya, na Rússia, correu o mundo: ursos polares invadiam a ilha em busca do alimento que já não encontravam mais em seu habitat, derretido pelo aquecimento global. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos viviam uma onda de frio raríssima, com termômetros marcando até 36 graus negativos. No Twitter, Donald Trump caçoava das evidências de que a temperatura do planeta está cada vez mais elevada: "Se o mundo está ficando mais quente, por que, então, está fazendo tanto frio nos Estados Unidos?".
É assustadora a maneira como o atual presidente daquele país e seus comparsas desprezam profundamente o conhecimento e negligenciam a ciência. Uma série de exemplos desse descaso – que, obviamente, desdobra-se para outras frentes que sofrem diretamente com as ideias ocas de Trump – estão registradas em "O Quinto Risco", livro-reportagem do escritor e jornalista Michael Lewis, mestre em economia pela London School, recém-lançado no Brasil pela Intrínseca.
Lewis centra sua escrita essencialmente na fase de transição entre o governo Obama e seu sucessor, de onde tira momentos dignos de uma comédia canastrona. Sem fazer a menor ideia da complexidade que é passar um cargo do país mais rico do mundo de um presidente para outro – o que inclui trocas de equipes com centenas de profissionais –, Trump acreditava que tomar conhecimento de todos os segredos, meandros e demais informações de seu país, bem como escolher profissionais competentes para diversas áreas, era algo que poderia ser resolvido num papo de duas horas.
Uma das áreas impactadas por essa postura de Trump – e toda a série trapalhadas e absurdos que dela irradiam – foi o Departamento de Energia. Joe Hezir, por exemplo, um dos nomes mais importantes do setor ao longo da gestão Obama, "meio que esperava que a equipe de Trump lhe pedisse para ficar, só para que o lado financeiro da instituição não sofresse uma mudança brusca. Ninguém entrou em contato. Nem sequer informaram que seus serviços já não eram mais necessários. Sem saber o que fazer e sem ter aparecido ninguém para substituí-lo, o diretor financeiro de uma operação de 30 bilhões de dólares simplesmente levantou da cadeira e foi embora".
Pelo que Lewis relata, Trump e sua equipe ignoravam o que está sob responsabilidade do Departamento de Energia, tanto que chegaram a propor sua extinção. Sequer imaginavam que a manutenção e a proteção do arsenal nuclear dos Estados Unidos fazem parte das responsabilidades do setor. Da leitura, saímos com a impressão – ou confirmamos a impressão – de que Trump é um cara que não sabe de nada sobre a máquina pública e não está nem aí para isso. De que não faz ideia – ou simplesmente não se importa – que um governo não deve apenas se preocupar com a economia, mas também lidar com problemas técnicos como "deter um vírus", "fazer um censo" ou "determinar se um país estrangeiro está tentando obter uma arma nuclear ou se os misseis norte-coreanos conseguem alcançar Kansas City", enumera Lewis,
A postura reflete um sentimento sobre o poder público nutrido por boa parte da população dos Estados Unidos (e, sabemos, não só de lá). "Havia a mentalidade de que tudo o que o governo faz é estúpido e ruim e que as pessoas nele são estúpidas e ruins […]. Aquelas pessoas eram malucas. Elas não estavam preparadas. Não sabiam o que estavam fazendo", resume um ex-funcionário da gestão de Obama ao comentar o período de transição.
"Algumas coisas com que todo presidente eleito deve se preocupar acontecem com rapidez: pandemias, furacões, ataques terroristas. Mas a maioria, não. A maioria é como uma bomba com pavio muito comprido que, em um futuro distante, quando o estopim atingir a bomba, poderá ou não explodir. É adiar a manutenção de um túnel cheio de resíduo letal até que um dia ele desaba", segue o autor.
Essa mistura de descaso com desprezo ao conhecimento, no entanto, é bem-vinda em certas situações. A ignorância pode ser muito útil para atender determinados interesses (de grupos que seriam financeiramente abalados caso políticas sérias contra o aquecimento global fossem implementadas, por exemplo). "Se a ambição é maximizar o ganho de curto prazo sem se importar com o custo de longo prazo, é melhor não saber o custo. Se você quer preservar sua imunidade em relação aos problemas difíceis, é melhor nunca entender realmente esses problemas. Há um lado positivo na ignorância e um lado negativo no conhecimento. O conhecimento deixa a vida complexa, dificulta as coisas para quem quer enxergar o mundo sob a própria perspectiva limitada", escreve Lewis.
E o que nós, brasileiros, temos a ver com isso? Bem, desprezo pela ciência e pelo conhecimento nunca estiveram tão na moda no país. Já descaso e negligência sempre foram uma constante por aqui, vide pontes que capengam, barragens que desabam, alojamentos que pegam fogo… Tanto lá quanto cá, resta saber onde essa escolha deliberada pela ignorância irá nos levar – e quanto tempo demorará para que estejamos novamente digladiando com clavas em mãos.
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.