Livro dos Racionais deveria ser adotado em todas as escolas do país
Rodrigo Casarin
14/12/2018 10h44
Lançado no final de 1997, "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais MC's, extrapolou o universo do rap e se consagrou como um dos álbuns mais importantes da história da música brasileira. O peso dos versos presentes em composições como "Capítulo 4, Versículo 3", "Tô Ouvindo Alguém me Chamar", "Mágico de Oz" e "Fórmula Mágica da Paz" fizeram com que as letras da obra se tornassem leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp. Aproveitando o embalo, a Companhia das Letras reuniu as composições em um livro homônimo ao disco. Não é fácil tirar as melodias da cabeça e mergulhar somente nas pedradas compostas por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, mas, quando isso enfim acontece, fica ainda mais evidente a força poética de "Sobrevivendo no Inferno"
Versos de Jorge Ben, no entanto, que abrem o álbum que virou livro. "Jorge da Capadócia" é um pedido de proteção, uma prece para o que vem adiante. E o que vem adiante é um conjunto extremamente coeso de poemas que tratam da vida onde o Estado, normalmente representado pela polícia, só chega para invadir, vilipendiar, extorquir ou matar. "Sobrevivendo no Inferno" nos mostra a luta para não sucumbir na guerra urbana e, quem sabe, seguir na linha em lugares onde poderosas forças atuam para encaminhar os jovens para o mundo do crime. "Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática/ Um sentimento de revolta/ E tô tentando sobreviver no inferno", lemos em certo momento, mostrando que a religião pode ser tanto uma das raras alternativas quanto a companheira do revólver.
Conforme mergulhamos nos poemas, encontramos personagens que resistem, mas também outros que se deslumbram com as propagandeadas maravilhas do mundo midiático e dos mais abastados. Enterram-se nas drogas ou apostam na bandidagem, que, diferente do que prega o senso comum, não tem nada de fácil – quase sempre termina em morte ou cadeia. "Pensando bem, que desperdício/ Aqui na área acontece muito disso/ Inteligência e personalidade/ Mofando atrás da porra de uma grade", versam para nos lembrar de quanta gente ótima acaba tragada pelo sistema doente. E Brown e seus parceiros não fazem isso de forma professoral, como mera pregação, mas expondo quão complexos são as escolhas e rumos possíveis. Se as quebradas de São Paulo na década de 1990 inspiraram as composições, hoje a realidade escancarada segue existindo, ainda que com diferentes nuances, em cantos espalhados por todo o país. Afinal, como diz um dos poemas, "periferia é periferia (em qualquer lugar)" – e em qualquer época, acrescentaria.
Lembro de, na infância, ouvir muita gente dizendo que os Racionais faziam apologia à bandidagem. O julgamento (calcado no preconceito) não poderia estar mais equivocado. Prestando atenção nos poemas, fica evidente que constroem sim um retrato possível do universo do crime, mostram as diversas mazelas sociais que levam alguém a pegar numa arma e tentar a sorte. No entanto, há o alerta: "Mas hoje eu posso compreender/ Que malandragem de verdade é viver". Nesse sentido, uma das inspirações volta a flertar com a religião, porém abraça muito mais a faceta histórica do que mitológica de um gigante da humanidade: "Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo/ Que andava entre mendigos e leprosos pregando a igualdade/ Um homem chamado Jesus".
A desigualdade social também transborda pelos versos. Há alguns, inclusive, que parecem antever o que veríamos nesta década, como helicópteros de políticos abarrotados de cocaína: "Quem vende a droga pra quem?/ Vem pra cá de avião ou pelo porto, cais/ Não conheço pobre dono de aeroporto e mais/ Fico triste por saber e ver/ Que quem morre no dia a dia é igual a eu e você".
É de "Diário de um Detento", uma das composições mais conhecidas dos Racionais, que tiro os versos que considero os mais potentes de "Sobrevivendo no Inferno": "Ratatatá, mais um metrô vai passar/ Com gente de bem, apressada, católica/ Lendo jornal, satisfeita, hipócrita/ Com raiva por dentro, a caminho do centro/ Olhando pra cá, curiosos, é lógico/ Não, não é, não, não é o zoológico/ Minha vida não tem tanto valor/ Quanto seu celular, seu computador".
Dessa indiferença – e desse ódio – aos encarcerados que nasceu um dos maiores problemas que temos hoje no país, o PCC. Mas a curiosidade da "gente de bem" que olha para lugares habitados por seres humanos como se estivesse encarando animais no zoológico não se limita aos presídios. Quantos não tratam da mesma forma as favelas, por exemplo? Quantos não têm certeza de que há vidas que realmente valem menos do que computadores e celulares? A segregação, a indiferença e o pensamento de superioridade que existe não só nas grandes cidades explica muito do caos social que vivemos.
A obra dos Racionais não é perfeita, claro. Há traços de machismo e homofobia, por exemplo, que hoje são felizmente recrimináveis, mas isso também ajuda a entender como a sociedade evolui. Pela maneira como aborda as questões sociais, que expõe para todas as classes uma realidade às vezes distante de quem vive nas regiões mais centrais e, por outro lado, pela maneira como representa cidadãos que até algumas décadas atrás pouco se viam representados em obras de arte, além de ser uma excelente porta de entrada para a poesia, "Sobrevivendo no Inferno" mereceria extrapolar o vestibular e estar nas mãos de todos os jovens. Se o Brasil realmente se preocupasse em encarar, entender e tentar superar seus problemas estruturais mais complexos, "Sobrevivendo no Inferno" seria leitura obrigatória em todas as escolas do país.
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.