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Imbecil Coletivo: o que há em um dos principais livros de Olavo de Carvalho

Rodrigo Casarin

30/11/2018 10h54

Foto: Vivi Zanatta/ Folhapres

A primeira edição de "O Imbecil Coletivo" saiu em 1996, mas foi a versão do ano seguinte que a Record escolheu para relançar há algumas semanas. Entre aquele volume que reunia artigos escritos de 1992 ao começo de 1997 e o de agora, apenas uma diferença significativa: a ausência do texto "Judaísmo e preconceito", retirado a pedido de Olavo de Carvalho, o autor. A informação consta no volume, mas não há uma linha sequer sobre o que levou Olavo a provavelmente se arrepender do que dissera sobre os judeus.

Radicado nos Estados Unidos, Olavo de Carvalho é apontado como a base filosófica por trás da ideologia de extrema-direita de Jair Bolsonaro e muito de seus seguidores, tanto que indicou dois ministros para o futuro presidente: Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Vélez Rodríguez (Educação). Lendo "O Imbecil Coletivo", o comedimento pediria para tratar o autor como um provocador, mas seria impreciso. Olavo vai além das provocações e muitas vezes demonstra preconceitos e nítidos traços de homofobia e racismo, além de autoritarismo e arrogância latentes. "De fato, provado está: duas ou três ou mil cabeças pensam muito pior do que uma", acredita.

O que o motiva em todos os textos presentes no volume é um tema único: "A alienação da nossa elite intelectual, arrebatada por modas e paixões que a impedem de enxergar as coisas mais óbvias. São observações esparsas, não pretendem traçar um diagnóstico de conjunto, mas indicam fortemente no sentido de uma suspeita: a suspeita de que algo no cérebro nacional não vai bem".

Olavo reduz praticamente todo o universo intelectual a uma coisa só, como se nossos pensadores pudessem ser condensados em uma caricatura que agrega tudo o que há de pior na esquerda. Adora jogar pedras principalmente no sociólogo e cientista político Emir Sader, enquanto exalta alguns poucos nomes que foram seus contemporâneos. Dentre os que se salvam estão o crítico literário Otto Maria Carpeaux, o jornalista Paulo Francis e o poeta Bruno Tolentino, notório por suas posições conservadoras – aparentemente, Olavo entraria numa guerra para defendê-lo.

Temente a Deus, acredita piamente em movimentações secretas da esquerda que visariam minar a Igreja Católica e dizimar qualquer traço de espiritualidade das pessoas. Elitista, prega que o aumento no número de universitários prejudica a qualidade da elite intelectual. Também não se importa em pegar a história e distorcê-la conforme lhe convém. "Não se encontrará a menor mancha na reputação administrativa de Salazar, de Marcello Caetano ou de Francisco Franco", escreve, por exemplo, ignorando que ditadores como os citados costumam censurar, prender, exilar ou matar aqueles que investigam suas falcatruas e que o próprio Franco enterrou muito dinheiro público no Real Madrid, apenas para ficarmos numa amostra bem conhecida de "mancha administrativa". Mas é simbólico que Olavo tente imputar tal lisura a líderes da direita extrema.

Ainda no campo histórico, para o autor as coisas são como são quase que por acaso – ou, quem sabe, por vontade divina -, não porque as mãos dos mais poderosos (quem tem o dinheiro e as armas mais potentes) moldaram e moldam os caminhos traçados e nos trouxeram ao mundo que temos hoje, com sociedades corrompidas por diversos problemas estruturais – os já citados racismo e homofobia são exemplos disso.

Separei aqui quatro trechos da obra que ajudam a entender o pensamento de Olavo de Carvalho, que também é autor de "O Jardim das Aflições" e "O Mínimo que Você Precisa Saber Para Não Ser um Idiota". Por extensão, servem para compreender o que se passa na cabeça de Bolsonaro e muitos de seus seguidores:

Negros deveriam agradecer porque foram escravizados só por três séculos

"É no tópico da religião que reivindicações do movimento black chegam ao cúmulo do absurdo. Por que um branco deve tomar os cultos africanos como elevadas expressões de cultura negra se a maioria dos negros que há no mundo se converteu ao Islã e hoje abomina esses cultos como idolatria politeísta? Um xeque negro, pregando numa mesquita de Adis Adeba ou de Nova York, lhes dirá que o culto afro é a desgraça da raça negra, um resíduo do tribalismo que deve ser sepultado no esquecimento, como os árabes sepultaram seus pré-islâmicos. Aliás, não é preciso ir tão longe. A toda hora vejo na TV pastores evangélicos negros e mulatos dizendo que a umbanda e candomblé são religiões do capeta e apontando esses cultos como causas do milenário azar da raça negra. Alguns apelam a um temível argumento weberiano: É imaginável um país rico, próspero e culto governado por praticantes de vodu? A economia da Suíça com a religião do Haiti?

[…]

A verdade é que a contribuição cultural das religiões africanas ao mundo é perfeitamente dispensável, tão dispensável que mais da metade dos negros que há no mundo vive perfeitamente bem sem ela e jamais trocaria a língua árabe por um dialeto iorubá ou a ciência europeia pelas receitas de macumba do sr. Verger. A verdade, amigos negros, é que vocês perderam a corrida da história – pagando talvez pelas maldades cometidas na época do esplendor faraônico -, se dispersaram e enfraqueceram, e acabaram sendo escravizados e vendidos aos portugueses pelos mesmos semitas – pois árabes são semitas – em cujo lombo desceram o chicote sem dó no tempo da construção das pirâmides. Não exite povo bom: e vocês, se foram escravos por três séculos após terem sido senhores de escravos por mais de um milênio, devem agradecer a Deus pela clemência do seu destino. Perto dos judeus, escravizados por egípcios e babilônios, explorados por muçulmanos, expulsos daqui para lá pelos cristãos e finalmente dizimados pelos nazistas, vocês são uns sortudos. E olhem bem: em cada nação por onde passaram, os judeus deixaram, em troca dos sofrimentos obtidos, um legado cultural infinitamente mais precioso do que o carnaval, o samba e outras bossas…"

Homossexuais teriam de reconhecer que são portadores de uma deficiência

"Não cabe perguntar ao homossexual por que ele tem atração por pessoas do próprio sexo – já que ocasionalmente heterossexuais podem tê-la também -, mas sim por que ele não tem atração pelo outro sexo, e se não considera isso uma forma de discriminação. Aí, das duas uma: ou todos os homossexuais teriam de declarar-se bissexuais que optaram livremente por uma das suas duas orientações possíveis, ou teriam de reconhecer que são portadores de uma deficiência".

A mãe é apenas depositária do feto

"Excluída, por absurda, a hipótese de que o feto seja um órgão, resta saber se, mesmo sendo alguma outra coisa, ele pertence à mulher que o carrega no ventre. A resposta é não, porque ele não é feito só de óvulo, mas também de esperma. O esperma não é produzido pelo corpo da mãe, mas pelo do pai, que apenas o deposita no corpo da mãe. A mãe não é, portanto, dona do feto inteiro, mas apenas de uma parte; da outra parte, que veio do pai, ela é apenas depositária – e tem tanto direito de jogar o feto no lixo quanto um banco tem o direito de jogar no lixo o dinheiro dos nossos depósitos"

Faculdade prejudicando a elite intelectual

"A democratização do ensino abriu a milhões de pessoas o acesso às profissões intelectuais e científicas. O que era uma elite, um punhado de gênios que trocavam ideias através de correspondência privada e de meia dúzia de publicações acadêmicas, tornou-se uma multidão inumerável. O inchaço quantitativo, acompanhado da redução de exigências, resultou numa formidável queda de nível: o proletariado intelectual, espalhado em milhares de instituições e ocupado de suas tarefas profissionais cotidianas, já não tenta sequer manter-se a par da marcha das ideias no mundo; e cada profissional já se conformou em não poder acompanhar a sucessão das descobertas nem mesmo na sua própria especialidade; cada qual segue por um túnel, sem saber onde vão dar os outros. Para compensar o desequilíbrio causado pela especialização, enxerta-se então no especialista uma prótese denominada 'cultura geral', e logo as universidades têm de despejar no mercado uma leva de 'especialistas em cultura geral'. Constituída sobretudo daqueles que não conseguiram especializar-se em mais nada, a nova profissão ocupa-se, ora de adornar com uma cereja de cultura o bolo dos conhecimentos profissionais, a título de laza e perfeitamente desligada de toda referência à vida prática, ora de esboçar uma síntese entre cultura e prática sob a forma de doutrinação ideológica".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.