Policial negro que se infiltrou na KKK: “Não primavam pela inteligência”
Rodrigo Casarin
14/11/2018 10h44
Em outubro de 1978, Ron Stallworth, primeiro detetive negro da história do Departamento de Polícia de Colorado Springs, cidade do Colorado, se deparou com um anúncio de jornal que chamou sua atenção: "Ku Klux Klan/ Para mais informações, contate: Caixa Postal 4771/ Security, Colorado, 80230". Estranhando aquela pequena divulgação do grupo de supremacistas, resolveu escrever uma carta. Disse ser um homem branco interessado em obter mais informações sobre a KKK, pois se preocupava com "crioulos" que estavam tomando conta de tudo.
Não pensou que obteria algum tipo de resposta, mas duas semanas depois o telefone tocou. Era Ken O'Dell, organizador local da KKK. "Eu li o que escreveu e estou me perguntando: por que você gostaria de se juntar à nossa causa?", disse o supremacista do outro lado da linha, sem imaginar que estava falando com um policial negro.
A brecha estava dada para o detetive, que, no entanto, cometera um erro primário. Sem botar fé de que algum membro da KKK lhe daria uma resposta, assinou a carta com seu próprio nome, um péssimo início para uma operação secreta. Em todo caso, jamais um negro como ele conseguiria se infiltrar num grupo racista, ainda mais na década de 1970, época na qual as lutas pela igualdade racial e direitos civis dos negros cindiam os Estados Unidos. Criado em uma sociedade que encarava a discriminação como algo natural, ainda na infância Ron aprendeu com sua mãe que deveria dar um murro na boca dos sujeitos que o ofendessem por conta da cor de sua pele; adulto, precisou esquecer muitas vezes o ensinamento para que não arrumasse brigas com parceiros racistas dentro da própria polícia.
Mas voltemos ao problema central de Ron nesta história. Sem poder se mostrar a Ken, convocou Chuck, parceiro de corporação, para ser seu representante em campo durante as investigações. Se em conversas telefônicas era o próprio Ron que dialogava com os racistas, nos encontros presenciais emprestava seu nome para o colega que, munido de escutas, transformou-se em seu duplo. Por incrível que pareça, ninguém notou a diferença entre a voz de Ron nas conversas à distância e a voz do falso Ron que se apresentava a cada encontro – membros da KKK acreditavam piamente que poderiam identificar um negro pelo telefone somente pela maneira da pessoa falar, o que explica muita coisa.
Mais rápido do que imaginavam, os investigadores ganharam espaço e tiveram acesso ao coração do grupo, tanto que Ron passou a ter frequentes conversas telefônicas com David Duke, o grande líder dos supremacistas, que anos depois entraria para a política partidária. E o que Ron e Chuck viam e escutavam era a típica e caricata ladainha: os racistas mostravam-se apaixonados por armas de fogo e diziam que os negros estavam dominando a sociedade, que estavam sendo privilegiados pelo governo e que deveriam voltar para a África, deixando os Estados Unidos apenas para os brancos, pois a "pureza racial" seria um dos pilares para a segurança da nação. Ignorância pura.
Ron conta toda a história da operação que liderou em "Infiltrado na Klan", lançado em 2014 nos Estados Unidos e que acaba de chegar ao Brasil pela Seoman – no dia 22 deste mês também estreia por aqui a adaptação cinematográfica da obra, dirigida por Spike Lee, que venceu o Grand Prix do Festival de Cannes deste ano. O livro traz menos momentos eletrizantes e de tensão do que seu enredo nos permite imaginar, mas é interessante por revelar os bastidores de uma operação dessa importância e mostrar como funcionava o grupo racista mais famoso dos Estados Unidos justamente no momento em que vozes e movimentos em prol dos negros, como os Panteras Negras, ganhavam grande espaço nos Estados Unidos.
São oportunas principalmente as observações que Ron faz sobre os supremacistas. "Por sorte, as pessoas com quem eu estava lidando, digamos, não primavam pela inteligência, e meus enganos não puseram em risco o resultado da investigação", escreve. Em outros momentos, deixa transparecer o quanto estava surpreso ao saber que parte de um dos planos de ação de KKK era baseado num dispositivo que tinham visto em um filme de James Bond, como se vida real e cinema fossem exatamente a mesma coisa.
De resultado prático, as investigações de Ron derrubaram supremacistas brancos que faziam parte do alto escalão do exército norte-americano. Além disso, diversas ações preventivas tomadas de acordo com as informações adquiridas impediram problemas maiores:
"Nenhum pai ou mãe de uma criança negra ou de outra minoria teve que explicar por que uma cruz de cinco metros e meio de altura podia ser vista queimando neste ou naquele local […]. Nenhuma criança dentro dos limites da cidade de Colorado Springs jamais teve que vivenciar, ao vivo e a cores, o medo causado por esse ato de terror. Nós evitamos que tal incidente fosse gravado em sua consciência da forma como muitos de seus pais podem ter ficado marcados quando crianças. Por meio de minhas conversas telefônicas de fachada com Ken sobre quando e onde tais atos de terror aconteceriam, nós, no departamento de polícia, pudemos pôr um ponto final neles. O sucesso em uma investigação policial nem sempre é medido pelo número de prisões".
Já no epílogo atualizado para a mais recente edição da obra, Ron traça um paralelo entre os Estados Unidos de hoje e aquele de quando sua investigação aconteceu e diz ver muitos pontos em comum, inclusive com os ecos do discurso de ódio e intolerância dos supremacistas ainda ecoando e se materializando em atos racistas e discursos preconceituosos de lideranças como Donald Trump.
"Embora o Partido Republicano do século 19, sendo o partido de Lincoln, estivesse em oposição à ascensão da Ku Klux Klan e à dominação da supremacia branca no que diz respeito aos escravos negros da América recém-libertos, acredito que se verifica uma conexão simbiótica do Partido Republicano do século 21 com grupos nacionalistas brancos como a Klan, neonazistas, skinheads, milícias e o pensamento supremacista branco da direita alternativa […]. Os republicanos começaram uma espiral descendente para a extrema-direita, abraçando todas as coisas abomináveis para os não brancos".
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.