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Vó, a Senhora é Lésbica? Leia o conto que causou polêmica no ENEM

Rodrigo Casarin

06/11/2018 09h21

Uma questão com fragmentos do conto "Vó, a Senhora é Lésbica?", de Natalia Borges Polesso, na prova do ENEM realizada no último domingo está causando polêmica, levantando discussões e, por que não, revelando a homofobia de muita gente por aí. Após ler os trechos selecionados, o estudante precisava assinalar qual a perspectiva da "tensão fundamental" revelada nesses dois parágrafos:

"Vó Clarissa deixou cair os talheres no prato, fazendo a porcelana estalar. Joaquim, meu primo, continuava com o queixo suspenso, batendo com o garfo nos lábios, esperando a resposta. Beatriz ecoou a palavra como pergunta 'o que é lésbica?' Eu fiquei muda. Joaquim sabia sobre mim e me entregaria para a vó, e, mais tarde, para toda a família. Senti um calor letal subir pelo meu pescoço e me doer atrás das orelhas. Previ a cena: vó, a senhora é lésbica? Porque a Joana é. A vergonha estava na minha cara e me denunciava antes mesmo da delação. Apertei os olhos e contraí o peito, esperando o tiro. […]

[…] Pensei na naturalidade com que Taís e eu levávamos a nossa história. Pensei na minha insegurança de contar isso à minha família, pensei em todos os colegas e professores que já sabiam, fechei os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da tia Carolina se tocando, apesar de todos os impedimentos. Eu quis saber mais, eu quis saber tudo, mas eu não consegui perguntar".

Há quem tenha se sentido ofendido. O deputado federal Delegado Francischini, do PSL do Paraná, por exemplo, se manifestou no Twitter dizendo que aquilo se tratava de "esquerdalha infiltrada [que] continua fazendo sindicalismo sexual nas provas. ENEM de esquerda com dias contatos (1º de janeiro – #BolsonaroNeles)". Ganhou algumas críticas, é verdade, mas também recebeu aplausos. "Eu fiz a prova do ENEM e fiquei horrorizada com as questões, vergonhoso, ainda bem que será o último ano dessa ideologia suja", respondeu uma de suas apoiadoras.

No final da noite dessa segunda-feira, a autora se posicionou sobre o assunto em sua conta no Facebook, lembrando também das inúmeras manifestações de apoio que encontrou pela rede. "Sei que muita gente ficou feliz ao ler o trecho e reconhecer de onde veio ou ao menos se reconhecer ali. Sei que há inúmeros trabalhos de graduação e pós-graduação sobre o livro. Sei que muitos professores já trabalharam com ele em sala de aula. Sei disso porque fui a muitas escolas, faculdades e feiras pra falar dele, pra falar com leitores. Mas também tenho que dizer que passei o dia de hoje muito mal devido a uma quantidade imensa de maldades e mau-caratismos que li e vi, imersas em interpretações paupérrimas que resumiam o conflito a 'incesto lésbico'. Como pensar ainda é grátis, aqui vai o texto", escreveu.

Com a autorização de Natalia, reproduzo aqui a íntegra do conto publicado em 2015 no livro "Amora" (Não Editora), vencedor do Jabuti de 2016 na categoria contos. Como bem lembrou a escritora, pensar ainda é grátis.

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"Vó, a Senhora é Lésbica?"

Vó Clarissa deixou cair os talheres no prato, fazendo a porcelana estalar. Joaquim, meu primo, continuava com o queixo suspenso, batendo com o garfo nos lábios, esperando a resposta. Beatriz ecoou a palavra como pergunta "o que é lésbica?" Eu fiquei muda. Joaquim sabia sobre mim e me entregaria para a vó, e, mais tarde, para toda a família. Senti um calor letal subir pelo meu pescoço e me doer atrás das orelhas. Previ a cena: vó, a senhora é lésbica? Porque a Joana é. A vergonha estava na minha cara e me denunciava antes mesmo da delação. Apertei os olhos e contraí o peito, esperando o tiro. Atrás das minhas pálpebras, Taís e eu nos beijávamos escondidas no último corredor da área de humanas na biblioteca da faculdade. Abri os olhos novamente e meio tonta vi que minha vó continuava de olhos baixos, Joaquim continuava batendo com o garfo nos lábios e Beatriz apenas sacudia as pernas curtas sobre a cadeira.

A vó Clarissa era professora de história, por isso, a casa era abarrotada de livros, atlas, guias, fitas VHS com documentários, revistas, papel, tudo. Quando criança, eu perguntava para ela o que tinha naqueles livros todos e ela me dizia que eram histórias, muitas histórias, de diferentes pessoas, lugares, tempos, com jeitos diferentes de contar. Ela perguntava se eu queria ouvir alguma, me mandava escolher um livro. Meus olhos pegavam fogo de curiosidade. Eu corria pela casa e voltava com passos atrapalhados, carregando mais livros do que podia carregar, jogava tudo no sofá e voltava correndo para buscar algum que tivesse se perdido pelo caminho. Ela ria alto e falava mas escuta, quantas histórias você quer que eu conte? Acho que não teremos tempo para tudo isso! Eu continuava com olhos gulosos, esperando que ela começasse. Qual deles você quer? Eu apontava para um livro aleatório. Muito bem, então. E começava: ah, uma história muito boa! Não me esqueço dessa nunca. É sobre um homem chamado Gregor Samsa, um vendedor. Depois de uma noite cheia de sonhos curiosos, ele acorda se sentindo muito estranho, tão estranho que não é capaz de se levantar da cama. Eu pensava que já tinha me sentido daquele jeito. Sua mãe vai ver o que aconteceu com ele, mas ele não abre a porta. Então, sua irmã vai ver o que aconteceu, mas ele também não abre a porta. Até que seu chefe resolve ir à sua casa, porque afinal, Gregor, nunca tinha se atrasado para o trabalho. Eu pensava que se a professora batesse na minha porta, eu precisaria de uma ótima desculpa. Então, ele se vê obrigado a abrir a porta. Todos estão em choque: Gregor Samsa é um inseto! Um inseto? Minha nossa!, eu dizia. Como uma barata. Eu tinha um fio de saliva pendido da boca, fazendo uma pocinha no sofá. A metamorfose foi um dos primeiros livros que li, fora os ditos para criança. Mas acho que só o li aos 11 anos de idade. Apresentei o livro na aula de leitura e, embora tivesse lido e tirado minhas próprias conclusões, na hora de contar, contei a história exatamente como minha vó me contava quando eu tinha seis anos, fazendo todo o suspense e as revelações nas horas certas.

Meus pais trabalhavam muito e nós, crianças, ficávamos na casa da vó no turno da tarde, depois da escola. Minha avó e minha mãe pensavam que era melhor estudar no turno da manhã, porque o cérebro está mais atento nesse período, então, desde sempre eu estudei de manhã. Agora até acho estranho ter aulas na faculdade no turno da noite, não posso controlar o sono, especialmente quando o professor de latim começa a falar. Ele é um velhinho de voz litúrgica que funciona a base de café e bala de leite. Foi na aula dele que eu conheci a Taís.

Só notei a Taís na metade do semestre, quando ela chegou com a perna engessada e veio sentar perto de mim, porque eu sempre sentava perto da porta, bem na frente. Pensou que ali seria cômodo. Ofereci ajuda. Caderno, pasta e cafezinho nas mãos, mais as muletas e ninguém para dar uma mão, ela disse, pareço invisível. A Taís era da linguística, eu, da literatura. Fico contente que aquela matéria fosse obrigatória para ambas as áreas. No intervalo, perguntei se queria que eu pegasse mais um café. Ela aceitou. Ficamos conversando o resto da aula, e na outra, e na seguinte, até a semana em que ela faltou. Eu não tinha pegado nenhum contato dela, telefone, e-mail, eu nem sabia seu nome completo, nada mesmo. Passei a semana inteira pensando se ia vê-la de novo, se tinha morrido, se tinha largado o curso, se alguma coisa terrível tinha acontecido.

Na semana seguinte, quando ela apareceu sorridente e sem o gesso, perguntei a ela o porquê da ausência na semana anterior. Ela esticou a perna fina em cima da mesa, depois me enlaçou com um braço e me deu um pirulito em troca de apoio para subir o lance de escadas. No intervalo saímos para ir à biblioteca. Ela disse que precisava de um livro, mas que não lembrava o nome, no entanto, disse que sabia onde ele ficava e fomos indo para o último corredor, sem janela e com uma luz fraca. Ali no fundo, ela disse, e me arrastou pela mão até onde a prateleira quase se encostava à parede. Pegou o livro e deu uma olhada dentro. Depois, ergueu os olhos para mim e com uma mão muito muito rápida, me puxou pela gola do blusão para bem perto dela e encostou a testa na minha. Eu sabia o que fazer, só que nunca tinha feito. A Taís sorriu com aqueles dentes brancos e enormes, sorriu dentro da minha boca.

Depois que a nossa babá foi demitida por causa do episódio do fogão a lenha e metade da cozinha incendiada, minha avó começou a passar as tardes conosco. Ela e a tia Carolina. Por volta das 15 horas, minha avó punha uma mesa de chá. As xícaras com flores azuis, o jogo de porcelana, os talheres de prata, bandeja. Um pouco depois do almoço, ela nos deixava sozinhos e ia até a padaria. Voltava em 20 minutos com uma caixa de delícias que sempre nos fazia muito curiosos. 15 e pouco chegava a tia Carolina. Minha avó ficava radiante.

A tia Carolina trazia, quase sempre, uns olhos de embaraço, agora lembro, os passos incertos, as mãos cheias de anéis que se torciam em si mesmos, os ombros para cima sempre. Parecia que não queria estar ali. Eu me lembro dela porque era muito bonita e porque eu gostava de imitá-la. Eu achava fascinante como a tia Carolina podia ter o cabelo branco, mas não parecer velha.

Minha vó sempre recomendava que não as incomodassem durante o chá e enchia o nosso quarto de tudo o que pudesse nos manter ocupados. Numa tarde dessas, peguei um pouco de talco, joguei na minha cabeça e fui até a cozinha para mostrar meu cabelo branco. A tia Carolina me pegou no colo rindo e eu me lembro de ter perguntado quantos anos ela tinha e por que não era velha se tinha cabelo branco. Demos um jeito de ficar na cozinha. Mas depois daquela tarde, as visitas começaram a rarear e a minha vó se entristeceu de um jeito que doía ver. Chorava pela casa e fumava escondida num canto da sacada. Acho que bebia também, porque havia cheiros estranhos e uma avó displicente naquele período. Passou um inverno inteiro e mais a primavera para a tia Carolina voltar a visitar, eu lembro direitinho, porque foi no aniversário do Joaquim que ela apareceu. Minha avó parecia outra mulher. Estava bem-vestida, contente e voltava a cheirar perfume e creme de lavanda. As coisas começam a fazer sentido na minha cabeça, agora, quinze anos depois.

Minha vó era mesmo lésbica.

– Joaquim, terminou de comer? – ela perguntou.

– Não.

– E onde você ouviu isso sobre eu ser lésbica?

– Ouvi o pai e a mãe falando.

– Ah.

Minhas mãos gelaram e, por mais que eu mastigasse, a comida não descia. Levantei da mesa com meu prato na mão e fui à pia, fingindo desinteresse.

– Joana? – disse minha vó.

– Oi. – Eu respondi com a voz mais fraca que tinha.

– Me traz a pimenta.

– Claro, vó.

Levei o moedor para a mesa e quando ia escapando ela falou.

– Você não vai sentar para ouvir a resposta do que seu primo perguntou?

Sentei. Aliás, eu nem percebi que já estava sentada, foi como se meu corpo tivesse feito aquilo automaticamente. Minha cabeça convulsa dentro, os fatos se conectavam.

– Sim. – disse.

Joaquim começou a rir e Beatriz apenas o seguiu no riso.

– Joana, quer me perguntar algo?

– A tia Carolina vem aqui hoje? – a pergunta saiu toda errada, mas minha vó compreendeu.

– Vem sim. Vem hoje, vem amanhã, vem todos os dias, como você sabe desde pequena. Tem alguma outra coisa que você queira perguntar?

– Não.

– Tem certeza?

Fiz que não com a cabeça, mas respondi um sim mastigado por um tipo de curiosidade. Na minha casa todas as conversas sempre eram assim, bem esclarecedoras. Ali, aquilo não me agradava.

Minha vó foi contando toda a história, e ela era muito boa em contar histórias. Enquanto ela falava, eu tinha os olhos fixos numa tapeçaria que cobria toda a parede atrás dela, uma tapeçaria com motivos medievais, uma festa num vilarejo. Duas coisas sempre me atraíram nela: o anão bêbado e as duas mulheres dançando um pouco afastadas, atrás de uma árvore. Enquanto eu olhava a tapeçaria, a Taís invadiu meus pensamentos. Lembrei da sua mão quente tocando meu corpo, por baixo do blusão e pensei nas mãos cheias de anéis da tia Carolina percorrendo o corpo da minha vó. Na tapeçaria, as duas mulheres tocavam as mãos. Respirei pesado e a Taís voltou, enfiei meu rosto em seus cabelos e aspirei-lhe bem fundo a nuca. Mas quando recuei, eram os cabelos brancos da tia Carolina sobre a face da vó Clarissa. Um caneco de cerveja se esvaziava num chão de lã amarela numa outra parte da tapeçaria e eu e a Taís dançávamos no quarto dela, depois de um ou dois giros, eram os corpos da tia Carolina e da vó Clarissa que caiam ofegantes sobre a cama. Tive a sensação de ter perdido grande parte da explicação. No final, minha vó dizia vinte anos, faz vinte anos. Até que o Joaquim perguntou por que ela e a tia Carolina não moravam juntas. Essa a minha vó não respondeu, disse que por hoje estava bom de histórias e resumiu dizendo que não moravam juntas porque não queriam. Porém me ocorreu lembrar que a tia Carolina tinha sido casada com seu Carlos. Me ocorreu que talvez ela não pudesse ficar com a minha vó. Me ocorreu que nunca tivessem dançado, nem bebido juntas, ou sim. Pensei na naturalidade com que Taís e eu levávamos a nossa história. Pensei na minha insegurança de contar isso à minha família, pensei em todos os colegas e professores que já sabiam, fechei os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da tia Carolina se tocando, apesar de todos os impedimentos. Eu quis saber mais, eu quis saber tudo, mas eu não consegui perguntar.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.