Está na hora de termos um God of War assinado por Neil Gaiman
Rodrigo Casarin
11/10/2018 10h51
Não há dúvidas: a maior novidade de God of War 4 é que agora Kratos segue a sua jornada acompanhado de Atreus, seu filho. E é justamente aí que está o grande trunfo narrativo do jogo lançado no primeiro semestre deste ano e disponível para Playstation 4: o mais recente episódio da saga se trata de uma grande história sobre a relação de um pai que precisa, de alguma forma, superar a sua inabilidade em lidar com os outros para construir e fortalecer os laços com seu rebento.
Depois de três games baseados na mitologia grega, em God of War 4 temos um mergulho na mitologia nórdica. Para tentar deixar seu passado marcado pelas batalhas contra os deuses do Olimpo pra trás, Kratos se arrumou em algum canto mais ao norte da Europa e se arranjou com Faye, com quem teve Atreus. O jogo, no entanto, já começa com Faye morta e cabe ao pai ajudar o filho a levar as cinzas da mãe até o ponto mais alto do reino, para que o ritual fúnebre se cumpra. Para tal, obviamente, precisarão superar monstros, entidades mitológicas como as valquírias, libertar dragões e se entender com divindades como Freya e Baldur.
Caminhando pro final da infância, Atreus sabe pouco sobre a vida e sobre seu passado. É emocionante a cena na qual Kratos o obriga a ter grandeza e matar logo um cervo que agoniza após levar uma flechada mal direcionada – a passagem prontamente me remeteu ao momento em que Fabiano precisa dar cabo da cachorrinha Baleia em "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, um dos momentos mais dramáticos de nossa literatura.
Se no lido com as armas Kratos se entende satisfatoriamente com Atreus, o mesmo não acontece em outras esferas. Abalado pela viuvez, bronco que dói e monossilábico, ouve o filho reclamar que não consegue sequer contar uma história direito (nesse aspecto, aliás, o destaque positivo vai para a cabeça decepada e tagarela do sábio Mímir, que acompanha a dupla durante boa parte da jornada). Virou até piada aqui em casa uma cena na qual Atreus se empolga por encontrar um lugar gigantesco, ao que o pai apenas responde: "É uma montanha. É grande". Empatia zero – acentuada por uma dublagem que às vezes soa um tanto canastrona, lembrando da habilidade em cena de Ricardo Macchi interpretando o cigano Igor. "Eu amo meu pai, só queria que ele fosse melhor", chega a se queixar o pequeno.
Só que as poucos pai e filho vão se entrosando, principalmente conforme Atreus ganha importância para que consigam caminhar na jornada. Mais do que um parceiro no campo de batalha, cabe ao garoto decifrar as mensagens escritas no alfabeto rúnico que Kratos ignora – e não se mostra nem um pouco interessado em aprender. "Por que alguém esconderia uma biblioteca?", indaga em certo momento o filho, evidenciando um interesse pelo saber muito maior do que aquele demonstrado pelo pai.
Previsivelmente, Kratos não consegue superar seu passado e paulatinamente partes de sua vida de espartano vão sendo reveladas para Atreus. Este, finalmente, quando descobre que também é um deus, prontamente se torna petulante e arrogante, cabendo ao pai explicar que ser uma divindade não exime ninguém de ter que responder pelas próprias atitudes – estamos falando de mitologias politeístas nas quais os deuses são bastante complexos, parecidos com os humanos, vale lembrar.
Após passear por mundos da mitologia nórdica para cumprir a missão principal, o final da jornada deixa algumas evidências de que poderemos ter a continuação do game ainda nesse universo. Então, não seria oportuno que minha sugestão já fosse executada exatamente nesse desdobramento, mas numa próxima saga desenhada praticamente do zero para Kratos (e Atreus, espero). Não está na hora de termos um God of War assinado por Neil Gaiman?
Gaiman não é apenas um dos escritores mais conhecidos em todo o mundo atualmente, mas também quem, talvez, melhor saiba dar vida autêntica com uma pegada contemporânea a antigos mitos. Coincidentemente, um de seus trabalhos mais recentes fala justamente sobre o universo mitológico abordado pelo último God of War. O autor faz um bom apanhado dos antigos mitos daquela região do mundo em "Mitologia Nórdica" (Intrínseca). Essa, contudo, é uma obra bem quadrada se olharmos para como ele burilou a mitologia nos seus dois principais títulos.
A HQ "Sandman" (Vertigo) é um desfile de referências e de provas de como o autor sabe lidar com a narrativa mitológica. Já em "Deuses Americanos" (Intrínseca), Gaiman levou antigas divindades para os Estados Unidos e as mostrou tentando sobreviver no ostracismo, com migalhas de fé, em um mundo onde novos deuses (o dinheiro, por exemplo) surgiram com uma veneração e um poder nunca antes vistos. Tenho certeza de que um God of War ambientado no universo de "Deuses Americanos" daria um grande e ousado jogo.
Não, Neil Gaiman não precisa de God of War. Não, God of War também não precisa de Neil Gaiman. Escritor e franquia já são gigantes vivendo cada um em seu mundo. Justamente por conta desse equilíbrio de forças que seria magistral termos um God of War assinado por Gaiman. Mais do que magistral, aliás, seria mitológico.
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.