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Curtindo a série? Leia bons trechos de Carcereiros, de Drauzio Varella

Rodrigo Casarin

11/05/2018 10h32

Há algumas semanas a Globo está exibindo "Carcereiros", série disponibilizada em 2017 na internet pela plataforma Globo Play e feita a partir do livro homônimo de Drauzio Varella. Autor de "Estação Carandiru", dentre outros, em "Carcereiros" (Companha das Letras) Drauzio conta histórias que presenciou e ouviu de agentes que trabalham ou trabalhavam no sistema prisional paulista. Publicado em 2012, o título traz também constatações e reflexões feitas pelo médico e escritor, o que, junto dos relatos, resultam num ótimo panorama do passado recente e da nefasta realidade dos presídios brasileiros – em especial os de São Paulo.

Num universo com suas próprias regras, o que norteia a convivência entre os profissionais que atuam nos cárceres e os prisioneiros é a certeza de que a "cadeia é um lugar povoado de maldade", como escreve Drauzio em certa altura da obra. Pensando principalmente em quem está gostando da série televisiva, selecionei algumas das melhores passagens do livro "Carcereiros". Confira:

Negociando diante de uma cabeça decapitada

– De cara é preciso assumir o controle da situação, deixar claro quem está no comando. Demonstrar insegurança, medo ou fraqueza é colocar tudo a perder.

Anos atrás, numa rebelião no interior do estado, Guilherme [o homem que contou este relato para Drauzio] chegou na gaiola em que dois prisioneiros, um dos quais falava compulsivamente, aguardavam o negociador ao lado de uma cabeça decepada. Fingindo não ter visto a cabeça jogada no chão, voltou-se para o que parecia mais equilibrado:

– Não converso com drogado. Volto daqui trinta minutos. Se esse maluco ainda estiver aqui, vou embora para casa.

Nada adiantou o maluco esbravejar, ameaçar que mataria os reféns e que incendiaria a cadeia, em passos lentos ele desapareceu na galeria. Quando retornou, meia hora mais tarde, a cabeça estava no mesmo local, mas havia outro preso no lugar do drogado. Em quinze minutos foi feito o acordo.

"Corretivos"

Em 1989, quando cheguei no Sistema Penitenciário, bater em presos já havia deixado de ser prática corrente, mas ainda apanhavam na calada da noite os suspeitos de conhecer segredos sobre fatos que poriam em risco a segurança da cadeia: a posse de um revólver, a construção de um túnel ou um plano de fuga, os que desrespeitavam funcionários e os que maltratavam o companheiro com requintes de sadismo.

Como as regras eram claras, parecia haver um acordo tácito entre agressores e agredidos, de modo que a agressão não provocava revoltas coletivas.

Se um detento tentava fugir disfarçado de mulher em dia de visita, escalar a muralha com uma corda improvisada ou passar desapercebido pela Portaria em meio a um grupo de visitantes, os carcereiros consideravam que a tentativa havia sido "na moral", merecedora dos trinta dias de praxe na cela conhecida como Isolada, mas não de uma surra, porque:

– A cara do preso é fugir, a nossa é impedir.

Se, no entanto, a tentativa envolvesse faca, arma de fogo ou violência contra qualquer funcionário, era outra história:

– Antes de ir para o castigo, a gente administrava um corretivozinho – como disse seu Araújo.

[…]

Nos casos mais graves entrava em ação o pau de arara, acompanhado ou não de choques elétricos, administrados depois de se "empapelar" o detento, isto é, enrolá-lo em tiras de pano para não deixar marcas. Havia o entendimento tácito de que jamais se deveria dar um tapa na cara, agressão considerada desmoralizadora e ofensiva ao extremo.

Silêncio que amedronta

É evidente que nas oito horas diárias e nos plantões noturnos em dias alternados, durante anos consecutivos, a aparência do agente em serviço é de tranquilidade absoluta: conversam uns com os outros, riem, contam casos, ajudam os presos a cumprir a rotina de limpeza das galerias, distribuição das refeições e execução de pequenos reparos; comportam-se como se estivessem em ambiente familiar. De um momento para outro, porém, um som inusitado, uma voz mais alta, alguém que passa apressado ou um objeto que cai é o suficiente para se calarem e ficarem alertas, como os cachorros sonolentos que levantam as orelhas ao menor ruído no quintal.

Não é o barulho que os deixa mais estressados, entretanto:

– Quando tudo está em silêncio, alguma tragédia vai acontecer. Vão matar alguém, executar um plano de fuga, começar uma rebelião.

Nessas ocasiões ficam agitados, apreensivos, cochicham entre si em linguagem cifrada, procuram manter-se próximos dos colegas e tomar medidas de precaução. Os que já foram sequestrados ou enfrentaram levantes consideram os momentos que antecedem as explosões de violência mais assustadores do que a crise deflagrada por elas.

Enfrentei algumas dessas horas em que o silêncio é absoluto. Quem disser que não sente medo é mentiroso. A iminência de um ataque é mais assustadora do que seu desfecho, porque as fantasias humanas não reconhecem limites nem respeitam a racionalidade.

Foto: Lucas Lima/ Uol.

Por que presos não trabalham?

Alguém já disse que "todo problema complexo admite uma solução simples: sempre errada". Lembro-me desse aforismo toda vez que ouço dizer: "homem preso precisa trabalhar" e que "é um absurdo vagabundo comer às custas da sociedade sem dar nada em troca".

Os iluminados que dizem essas obviedades o fazem com o ar de Cristóvão Colombo ao descobrir a América. Nem sequer lhes passa pela cabeça a dúvida mais imediata: alguém poderia ser contra o trabalho nas prisões?

As vantagens são de tal ordem, que jamais conheci no Sistema Penitenciário uma só pessoa que se opusesse à ideia de criar empregos nas cadeias. Do mais humilde funcionário ao presidente da República, todos concordam que trabalhar dá ao sentenciado a possibilidade de aprender uma profissão, de fazer um pecúlio para ajudar a família e facilitar a reinserção na sociedade depois de cumprir a pena, de afastá-lo dos pensamentos nefastos que a ociosidade traz, além de melhorar a autoestima, conferir dignidade e acelerar a passagem das horas.

Tantos são os benefícios que cabe a pergunta: por que o trabalho não é obrigatório nas cadeias?

Por uma razão simples: impossível existir empregados sem empregadores. Todos os diretores de presídio se queixam da dificuldade de conseguir empresas dispostas a montar oficinas nas dependências da cadeia. As poucas que o fazem oferecem trabalhos puramente manuais: costurar bolas de futebol, colocar espirais em cadernos, montar tomadas elétricas, pregar botões, confeccionar pequenas peças de roupa e outras tarefas que não exigem formação técnica. É pouco provável que tais atividades formem profissionais preparados para enfrentar a concorrência no mercado de trabalho. A mesma sociedade que se revolta contra a vida ociosa dos prisioneiros lhes nega a oportunidade de sair da ociosidade.

Massacre do Carandiru

Os funcionários antigos lamentam o aparecimento de facções que impõem suas leis nos presídios atuais, inversão de papéis que ganhou força após o massacre de 1992. A estupidez assassina da autoridade de quem partiu a ordem para a PM invadir o pavilhão Nove, tomado por uma rebelião que não havia feito um único refém, situação que os carcereiros teriam resolvido com facilidade caso lhes dessem a oportunidade de negociar com os rebelados, foi um divisor de águas na história das cadeias paulistas. A partir do dia 2 de outubro de 1992 os presos se organizaram para assumir o poder no interior dos presídios, criando um nível de cogestão interna que jamais seria admitido se não tivesse ocorrido aquele evento absurdo.

Motivação

Sempre que tentei buscar as razões para explicar por que um homem da minha idade, criado por um pai que deu exemplo e transmitiu aos filhos princípios rígidos de caráter, honestidade e respeito aos direitos do próximo, tem tamanho fascínio pelo mundo do crime, saí de mãos vazias.

Hoje, aceito esse interesse como um traço de personalidade, sem me preocupar com questionamentos morais nem psicanalíticos, mas, aos doze anos de idade, a atração pelo universo dos que viviam em desacordo com os valores que me eram ensinados em casa aumentava em mim a perplexidade que permeia a transição da puberdade para a adolescência.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.