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Para historiador, acreditar no livre mercado é como acreditar no Papai Noel

Rodrigo Casarin

21/02/2018 10h47

Terminando, enfim, de falar sobre "Sapiens – Uma Breve História da Humanidade" (L&PM), livro de Yuval Noah Harari que no ano passado figurou entre os mais vendidos do país, desta vez foco na segunda metade da obra, na qual o autor se dedica principalmente a mostrar como o capitalismo, a ciência e os impérios moldaram, especialmente nos últimos 500 ou 600 anos, o mundo que temos hoje (também comentei o título aqui e aqui).

Ao longo de todo o livro, um dos méritos de Harari, doutor em história pela Universidade de Oxford e especializado em história mundial, é mostrar como coisas que nos parecem quase naturais, que nos dão a impressão de que sempre estiveram aí, foram, na verdade, construídas com o passar do tempo. Isso nos faz refletir sobre o quanto a realidade em que vivemos não passa de uma mera convenção social arquitetada ao longo da existência do ser humano. O dinheiro, por exemplo, talvez o grande protagonista da última metade do livro, só possui o valor atual porque, em algum momento do passado, homens aceitaram dois princípios universais a ele inerentes: a convertibilidade (ou seja, podemos trocá-lo por bens e serviços) e a confiança (a grana intermediando qualquer tipo de relação comercial, substituindo o antigo escambo).

Um outro mérito de "Sapiens" é a todo momento refletir sobre como as decisões que os humanos tomam impactam em sua própria história. Nesse sentido, Harari lembra de um aspecto obscuro provocado pela aceitação do dinheiro: "Quando tudo é conversível, e quando a confiança se baseia em moedas, corroem-se as tradições locais, relações íntimas e valores humanos, substituindo-os pelas frias leis da oferta e da procura".

O autor argumenta que "as comunidades humanas e as famílias sempre se basearam na crença em coisas 'de valor inestimável', como honra, lealdade, moral e amor. Essas coisas ficam de fora do domínio do mercado e não deveriam ser compradas ou vendidas por dinheiro. Mesmo que o mercado ofereça um bom preço, certas coisas simplesmente não devem ser feitas. Pais não devem vender seus filhos como escravos; um cristão devoto não deve cometer um pecado mortal; um cavaleiro leal não deve trair seu senhor; e terras e tribos ancestrais não devem ser vendidas a estrangeiros". Harari, no entanto, lembra que "o dinheiro sempre tentou romper essas barreiras, como água penetrando por rachaduras em uma barragem".

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Faço esse recorte pelo caráter provocativo, mas em nenhum momento Harari é maniqueísta em seu texto. Pelo contrário, aliás. Mostra como praticamente tudo em nossa história tem aspectos positivos e negativos – ainda que algumas passagens jamais mereçam ser incensadas – e que, bem ou mal, o que somos hoje é o resultado de parte – a parte que conseguiu se sobrepor às outras – do que nos sucedeu. Dessa forma, o dinheiro aparece como uma das principais forças a fomentar, por exemplo, a ciência moderna.

Ainda no jogo de luz e sombra, essa ciência que trouxe incontáveis avanços em diversas áreas é a mesma que muitas vezes marcha aniquilando tudo o que aparece pela frente com a desculpa de levar a modernidade aos outros. Um exemplo disso, cita o autor, é a chegada do desbravador e pesquisador inglês James Cook na Tasmânia, no século 18, onde humanos viviam isolados há aproximadamente 10 mil anos. Esta parte da história, diga-se, possui muitas familiaridades com o que aconteceu com os índios no Brasil, veja só:

"Primeiro os colonizadores europeus os expulsaram das partes mais ricas da ilha e depois, cobiçando até mesmo as terras inóspitas que sobraram, os perseguiram e mataram sistematicamente. Os poucos sobreviventes foram acossados para um campo de concentração evangélico, onde missionários bem-intencionados, mas não exatamente tolerantes, tentaram doutriná-los nos costumes do mundo moderno. Os tasmanianos foram instruídos na leitura e na escrita, no cristianismo e em várias 'habilidades produtivas', como costurar roupas e trabalhar na lavoura. Mas eles se recusavam a aprender. Foram se tornando cada vez mais melancólicos, deixavam de ter filhos, perdiam todo o interesse pela vida e acabavam por escolher a única forma de escapar do mundo moderno da ciência e do progresso: a morte".

Ingênuo como a crença no Papai Noel

Ao longo de "Sapiens" são muitos os mitos – essas verdades aparentemente incontestáveis que acabam por, de alguma forma, orientar o convívio humano – sobre os quais Harari se debruça. É interessante, nessa parte final da obra, a maneira como ele analisa a crença em um dos principais mitos dos nossos dias: o livre mercado, que define como tão ingênuo como a crença no Papai Noel.

"Simplesmente não existe um mercado completamente isento de interesses políticos. O recurso econômico mais importante é a confiança no futuro, e esse recurso é constantemente ameaçado por ladrões e charlatões. Os mercados, sozinhos, não oferecem proteção alguma contra fraude, roubo e violência. É função dos sistemas políticos assegurar a confiança legislando sanções contra trapaças e instaurando e financiando forças policiais, tribunais e prisões que fazem com que a lei seja cumprida".

Como exemplo de algo calamitoso impulsionado pela lógica capitalista sem qualquer tipo de intervenção direta de governantes, o autor lembra da escravidão. "O comércio de escravos não era controlado por nenhum Estado ou governo. Foi uma iniciativa puramente econômica, organizada e financiada pelo livre mercado de acordo com as leis da oferta e da demanda. As empresas privadas de comércio de escravos vendiam ações nas bolsas de valores de Amsterdã, Londres e Paris. Europeus de classe média à procura de um bom investimento compravam essas ações", escreve, informando que o processo costumava render lucros de aproximadamente 6% ao ano.

"Essa é a pedra no sapato do capitalismo de livre mercado. Não há como garantir que os lucros sejam ganhos de forma justa. Ao contrário, a ânsia por aumentar os lucros e a produção cega as pessoas para qualquer coisa que possa estar no caminho. Quando o crescimento se torna um bem supremo, irrestrito por qualquer outra consideração ética, pode facilmente levar à catástrofe. Algumas religiões, como o cristianismo e o nazismo, mataram milhões por ódio fervoroso. O capitalismo matou milhões por pura indiferença unida à ganância".

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Antes que algum maluco taxe o historiador de comunista, aviso que em nenhum momento ele faz qualquer tipo de exaltação ao comunismo, ainda que admita que este serviu para frear um pouco a ganância do capitalismo. Analisando a história, como já disse, Harari a todo tempo se preocupa em principalmente confrontar as grandes certezas da humanidade, apontar suas idiossincrasias e contradições; acredito que essa seja uma das razões primordiais para o sucesso da obra. Além disso, mostrar como o ser humano é, ao menos por enquanto, apenas mais um animal que segue cometendo erros que cometia há milhares de anos também dá uma dimensão interessante ao livro. Junte isso à linguagem acessível e a contextualizações que dialogam a todo momento com os dias de hoje e temos um título realmente interessante. Ótimo saber que haja tanta gente interessada em ler as "aulas" que Harari dá em "Sapiens".

Já nas páginas derradeiras da obra, o historiador aponta e analisa o "capitalismo-consumismo" como a nova religião do mundo moderno, no qual justamente o dinheiro e os bens de consumo são os novos deuses. O autor ainda questiona para onde todo o desenvolvimento científico e tecnológico poderá nos levar (assunto que aborda com profundidade em seu outro livro, "Homo Deus", publicado pela Companhia das Letras) e abre um importante espaço para o debate a respeito da ética na relação entre os humanos e os outros animais, provavelmente o grande calo moral da nossa espécie enquanto dominadora do mundo. Ao final, a principal pergunta que Harari parece nos deixar é: para que exatamente fazemos tudo o que fazemos? Onde queremos chegar com isso?

Yuval Noah Harari.

Para onde queremos ir?

Por fim, reproduzo aqui o breve epílogo de "Sapiens", intitulado "O animal que se tornou um deus", uma bela síntese do tom positivamente provocativo de Harari:

"Há 70 mil anos, o Homo Sapiens ainda era um animal insignificante cuidando da sua própria vida em algum canto da África. Nos milênios seguintes, ele se transformou no senhor de todo o planeta e no terror do ecossistema. Hoje, está prestes a se tornar um deus, pronto para adquirir não só a juventude eterna como também as capacidades divinas de criação e destruição.

Infelizmente, até agora o regime dos sapiens sobre a Terra produziu poucas coisas das quais podemos nos orgulhar. Nós dominamos o meio à nossa volta, aumentamos a produção de alimentos, construímos cidades, fundamos impérios e criamos grandes redes de comércio. Mas diminuímos a quantidade de sofrimento no mundo? Repetidas vezes, os aumentos gigantescos na capacidade humana não necessariamente melhoraram o bem-estar dos sapiens como indivíduos e geralmente causaram enorme sofrimento a outros animais.

Nas últimas décadas, pelo menos fizemos algum progresso real no que concerne à condição humana, com a redução da fome, das pragas e das guerras. Mas a situação de outros animais está se deteriorando mais rapidamente do que nunca, e a melhoria no destino da humanidade ainda é muito frágil e recente para que possamos ter certeza dela.

Além disso, apesar das coisas impressionantes de que os humanos são capazes de fazer, nós continuamos sem saber ao certo quais são nossos objetivos e, ao que parece, estamos insatisfeitos como sempre. Avançamos de canoas e galés a navios a vapor e naves espaciais – mas ninguém sabe para onde estamos indo. Somos mais poderosos do que nunca, mas temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder. O que é ainda pior, os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses por mérito próprio, contando apenas com as leis da física para nos fazer companhia, não prestamos contas a ninguém. Em consequência, estamos destruindo os outros animais e o ecossistema à nossa volta, visando a não muito mais do que nosso próprio conforto e divertimento, mas jamais encontrando satisfação.

Existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?"

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.