Qual é a força do laço entre irmãos? Romance ecoa a questão
"– Escuta bem, Fernando: a Onesita disse que o Carlito não está contente onde está.
– No cemitério do Guaíba?
– A Onesita disse que os irmãos tinham que fazer alguma coisa.
– Como assim? Ela falou do irmão de criação também?
– Falou.
– O quê?
– Ela disse que neste país misturado todo mundo é irmão de criação. Somos todos crioulos, entende?
– Que nem cachorro vira-lata?
– Que nem cachorro vira-lata.
– E o que tu quer fazer?
– Vou precisar de ti pra tirar o Carlito do cemitério. A gente precisa levar ele até a Argentina pra essa corrida de segunda-feira.
– Como assim? Levar o corpo?
– Acho que a essa altura não tem mais corpo. Só osso".
O diálogo que destaco vem de um dos momentos mais importantes de "Os Donos do Inverno" (Não Editora), terceiro romance do gaúcho Altair Martins. A partir da afirmação de uma égua (Onesita, que tem força para virar mais um animal memorável de nossa literatura), Elias e Fernando partem com o corpo do irmão, o jóquei C. Martins – chamado carinhosamente de Carlito, morto após um acidente numa estrada – por uma jornada de carro que atravessa o Rio Grande do Sul, o Uruguai e chega a Buenos Aires, onde levarão a ossada para a grande noite de turfe portenha, prova dos sonhos do finado parceiro.
É uma viagem complicada – e não digo isso somente pela ossada que transportam ilegalmente no porta-malas, dentro de uma caixa de isopor. Fernando, taxista, e Elias, professor, se evitavam há 24 anos. Após o alerta da égua, (Elias troca ideia com cavalos, num bem integrado flerte com a fantasia, um dos méritos do livro), os quatro dias dentro de um carro praticamente os obrigam a tentar acertar as arestas do passado. Dentre as marcas da viagem, a crueldade e a brutalidade contra os animais, em rincões onde qualquer tipo de vida parece valer muito pouco, chamam a atenção e comovem.
Não bastasse a boa história, há um elemento em "Os Donos do Inverno" que merece aplausos. Falo do narrador, que em diversos momentos em que Elias e Fernando estão juntos crava o "nós", trazendo para a cena um terceiro personagem nunca explicitado. Seria Onesita se intrometendo na narrativa? Estaria um cavalo – uma égua, para ser mais preciso – conversando comigo também? Cheguei a cogitar, confesso. Conforme o virar das páginas, no entanto, afastei essa hipótese e constatei que um efeito é claro: o recurso acaba por amalgamar os irmãos. Quando estão juntos, transformam-se em algo plural, coletivo. Um elo que mesmo o sangue distinto, o afastamento de décadas, as brigas ou a morte não pode quebrar.
É preciso coragem para apostar num jogo de aproximação e distanciamento como esse. É preciso talento para executá-lo tão bem como fez Altair Martins, que estreou no romance em 2008 com "A Parede no Escuro", livro que lhe valeu o Prêmio São Paulo de Literatura, e em 2014 lançou "Terra Avulsa" (ambos pela Record). No podcast do Página Cinco, aliás, ele comentou como as duas obras se relacionam com o belo "Os Donos do Inverno", uma das grandes ficções nacionais do ano.
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