André Dahmer: As artes nunca abaixarão a cabeça para desmandos autoritários
Depois das coletâneas "Vida e Obra de Terêncio Horto", de 2014, e "Quadrinhos dos Anos 10", de 2016, agora o quadrinista André Dahmer, responsável por tiras veiculadas nos jornais Folha de São Paulo e O Globo, reúne outra de suas principais séries em um novo livro: "Malvados" (Quadrinhos na Cia). Nas HQs de traços simples, o destaque está no texto que oscila entre o irônico, o sarcástico e o puro deboche, normalmente com um humor que arranca preocupados risos de canto de boca dos leitores. O olhar empregado para analisar a sociedade brasileira – tendo como alvos preferidos a classe média e a elite –, a política e o cotidiano nacional é daqueles raros de se encontrar por aí.
Sim, já falei que André Dahmer é um dos meus artistas favoritos. Conversamos há dois anos por conta da série "Brasil Medieval". O papo agora se repete, mas tendo em vista uma realidade na qual o processo de medievalização avançou. Não que tudo esteja perdido, no entanto. "Parto do princípio de que ainda há garantias de liberdade de expressão no país, mas sei que nossa democracia está banguela. Estamos passando por um duro teste, mas há resistência democrática. A classe artística não vai se calar. O teatro, o cinema e as artes nunca abaixarão a cabeça para desmandos autoritários. Somos muitos, estamos fortes e atentos", diz André.
Com episódios de censura a artistas cada vez mais frequentes, o quadrinista também falou sobre como é lidar com o público no Brasil de hoje se comparado com o país de outrora. "Sou branco, hétero e de classe média. Seria muita covardia sentir medo agora, nessas condições. Quem está na linha de tiro são pobres, negros, gays. Se eu fosse um rapaz negro de vinte anos, da periferia, teria muito medo de viver no Brasil, com toda razão".
As cinco tirinhas que ilustram a entrevista foram selecionadas pelo próprio André entre as 368 que compões a obra. Na visão do artista, são representativas da maneira como podemos sacar o espírito do país por meio da série "Malvados".
As tiras de "Malvados" nos ajudam a entender como o país foi se transformando, acirrando e se tornando mais agressivo e intolerante com o passar dos últimos anos. Como foi para você acompanhar essas mudanças e levá-las para HQs?
O ódio instaurado no país não começou de uma hora para outra. Há conflito de classe e interesses desde sempre. O fato novo é o ódio organizado, sistematizado, em rede. Este é um fenômeno mundial que derruba e elege governos. Está acontecendo na América Latina, nos Estados Unidos, na Europa… A máquina de ódio e desinformação funciona em rede e globalmente. É um projeto de poder.
Nesse sentido, é mais difícil fazer, publicar e lidar com o público hoje do que era há três, cinco ou oito anos?
Para mim, não faz muita diferença. Sou branco, hétero e de classe média. Seria muita covardia sentir medo agora, nessas condições. Quem está na linha de tiro são pobres, negros, gays. Se eu fosse um rapaz negro de vinte anos, da periferia, teria muito medo de viver no Brasil, com toda razão.
Estamos frequentemente nos deparando com episódios de censura a artistas. Um dos efeitos colaterais disso pode ser os próprios artistas pensando diversas vezes antes de fazer algo, caindo numa espécie de autocensura. Você já notou estar se policiando dessa forma em algum momento? Hoje pensa muito mais se vale a pena publicar determinadas críticas ou não?
Parto do princípio de que ainda há garantias de liberdade de expressão no país, mas sei que nossa democracia está banguela. Estamos passando por um duro teste, mas há resistência democrática. A classe artística não vai se calar. O teatro, o cinema e as artes nunca abaixarão a cabeça para desmandos autoritários. Somos muitos, estamos fortes e atentos. Dentro das Instituições também há alguma resistência. No STF, no Senado e no Congresso, ainda há gente pensando o Brasil e o sucateamento da nossa democracia. Vejo no ambiente hostil uma oportunidade de repensar o Brasil que queremos para os nossos filhos.
Olhando só para a série "Malvados", há alguma tira de que você se arrepende de ter feito? Por quê?
Não sou de me arrepender. Sei da natureza do meu trabalho com tiras diárias. A gente erra, faz tiras ruins ou impróprias. Faço tiras diárias para dois jornais. Não há como acertar o tempo todo. Nesse aspecto, entendi que isso é normal diante do volume de trabalho.
As múltiplas formas de avanço da estupidez e da barbárie são temas frequentes em "Malvados". Acredita que tratar desses assuntos nas tirinhas é uma forma de tentar combatê-los, um desabafo, uma possibilidade de provocar o pensamento crítico no leitor….?
Meus leitores já têm pensamento crítico, acho. O que precisa ser feito é uma reorganização do trabalho de base, com os excluídos, os sem escola, os sem direitos. Tirinhas não mudam o mundo, mas a educação, sim.
Em 2017, quando te entrevistei por conta da série "Brasil Medieval", você disse o seguinte: "As próximas gerações saberão muito bem das atrocidades que estão sendo levadas a cabo agora, e os setores responsáveis por elas. Porém, para um futuro próximo, não vejo uma situação de melhora. Assim como as instituições, o povo brasileiro também está muito adoecido e perdido nesse processo todo. O ódio e a descrença, motores do novo fascismo, estão muito entranhados na população". Mantém a avaliação ou acha que de lá pra cá algo mudou?
Nada mudou, inclusive o projeto autoritário está em vias de consolidação. É muito triste, mas não há tempo para lamentação. O momento é de reorganização das forças democráticas; das pessoas que acreditam em ciência, artes, educação, amor ao próximo. Não sei se é possível reverter este quadro nos próximos anos e, se tratando de Brasil, tudo pode acontecer. Porém, como já disse, haverá resistência democrática. Não será tão fácil assim.
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Com a presença de Dahmer, o lançamento de "Malvados" acontece nesta quarta, dia 2 de outubro, a partir das 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo, no Rio de Janeiro.
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