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Para reagir a lunáticos e fascistas, quadrinista cria série Brasil Medieval

Rodrigo Casarin

25/10/2017 09h56

Há pelo menos dois anos que vinha postergando convidar o quadrinista André Dahmer para conceder uma entrevista ao blog. Motivos não faltavam para o papo, mas a impressão que sempre tive de André é que seu trabalho é tão relevante que qualquer hora é uma boa hora para ouvir o que ele tem a dizer. No entanto, nas últimas semanas ele começou uma nova série de tirinhas: "Brasil Medieval", a melhor crítica artística (na minha opinião, óbvio) para o momento tenebroso pelo qual o país vem passando. Definitivamente, levando em conta sua série sobre o avanço do fascismo por essas bandas, era a hora de falar com André.

"Não se trata mais do conservadorismo clássico da elite brasileira, que sempre existiu. O buraco é muito mais profundo. Se antes você identificava ideais fascistas apenas em pequenos grupos de lunáticos, como supremacistas brancos, agora você constata que milhões de pessoas simpatizam com ideologias de extrema-direita, como a possibilidade de uma intervenção militar. O mais triste é que a maioria desses simpatizantes estão localizados na ponta mais frágil do sistema: são pessoas pobres e de classe média. Gente que não será contemplada com nenhum benefício, econômico ou social, caso esta e outras barbaridades venham a ser implantadas de fato", diz o artista sobre os motivos que o levaram a criar a nova série.

Vencedor de quatro HQMix, um dos prêmios mais importantes dos quadrinhos no Brasil, André publica suas tirinhas nos jornais "O Globo" e "Folha de São Paulo" e em sua conta no Twitter. Seu livro "Quadrinhos dos Anos 10", lançado pela Companhia das Letras, é um dos finalistas do Prêmio Jabuti deste ano. Dentre os sucessos do autor, estão a série "Malvados" e os personagens Emir Saad e Terêncio Horto. O trabalho do artista é focado essencialmente em críticas políticas, sociais e comportamentais.

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"Temos um país de 200 milhões de habitantes, mas apenas 75.000 pessoas detém quase 1/4 de toda riqueza do país. Não é preciso ser um gênio para saber que isso não pode dar certo, nem do ponto de vista social, nem do econômico. É um modelo de concentração de renda muito violento, e que gera aberrações enormes no sistema", diz sobre um dos alvos de seus desenhos. Já sobre nosso momento político e social, observa um povo perplexo diante de "uma quadrilha de bandidos que não importa com a opinião pública".

Como surgiu a ideia de fazer a série com os cavaleiros medievais que tratam de temas contemporâneos como personagens?

"Brasil Medieval" é uma série que retrata o avanço do novo fascismo no Brasil. Não se trata mais do conservadorismo clássico da elite brasileira, que sempre existiu. O buraco é muito mais profundo. Se antes você identificava ideais fascistas apenas em pequenos grupos de lunáticos, como supremacistas brancos, agora você constata que milhões de pessoas simpatizam com ideologias de extrema-direita, como a possibilidade de uma intervenção militar. O mais triste é que a maioria desses simpatizantes estão localizados na ponta mais frágil do sistema: são pessoas pobres e de classe média. Gente que não será contemplada com nenhum benefício, econômico ou social, caso esta e outras barbaridades venham a ser implantadas de fato, muito pelo contrário. Tanto radicalismo é fruto de um processo de despolitização e demonização da política, além de descrença generalizada nas instituições públicas, como a Justiça e a polícia, por exemplo.

Como você encara esse momento político e principalmente social que estamos vivendo?

Vejo um povo perplexo diante de uma quadrilha de bandidos. Bandidos que não se importam com a opinião pública, porque fazem parte de um governo ilegítimo e, por consequência, sem qualquer compromisso com representatividade. Ora, se sabemos agora que não houve crime de responsabilidade no governo que foi derrubado; se a perícia do Senado e o Ministério Público constataram que Dilma não cometeu tal crime, este é um governo ilegítimo, sim. Agora, além de tudo, descobrimos através de depoimentos de pessoas presas e ligações telefônicas interceptadas, que o impeachment foi construído por corruptos que queriam acabar com a Lava a Jato. Pior: sabemos agora que muitos deles receberam propina para votar pelo impeachment.

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A elite econômica também costuma estar no foco de suas críticas. Acha que essa elite é um dos problemas do Brasil?

Há gente rica em todos os lugares do mundo, inclusive em países desenvolvidos. Este não é o ponto. A questão é a histórica e absurda concentração de renda no Brasil, uma das piores do planeta. Temos um país de 200 milhões de habitantes, mas apenas 75.000 pessoas detém quase 1/4 de toda riqueza do país. Não é preciso ser um gênio para saber que isso não pode dar certo, nem do ponto de vista social, nem do econômico. É um modelo de concentração de renda muito violento, e que gera aberrações enormes no sistema. Por exemplo, já temos a segunda maior população carcerária do mundo. São quase 700.000 brasileiros, a maioria negros e pobres, encarcerados. Porém, mesmo com este forte controle social do Estado sobre os mais fracos, a violência só tem aumentado. Como é possível fazer que uma nação prospere dentro de um sistema tão desigual e perverso? É simplesmente impossível.

De que maneira o público costuma reagir às suas tiras? Percebeu alguma mudança no perfil dessas reações nos últimos tempos?

Bem, tenho recebido mensagens de lunáticos em maior quantidade do que de costume. Gente que acredita realmente que há possibilidade do comunismo ser implantado no país, o que é um pensamento totalmente fantasioso e tacanho. Veja, mesmo com uma década e meia com o PT no poder, nada disso aconteceu. Muito pelo contrário: apesar do forte e necessário investimento na área social, os anos Lula também foram marcados pela prosperidade sem precedentes do sistema financeiro e dos bancos, por exemplo. Então, sentir medo da tal ameaça comunista, e através do PT, é de uma ignorância histórica muito grande. Essa obsessão doentia foi construída ao longo dos anos para que agendas extremamente conservadoras avancem, como estamos vendo agora.

No dia das crianças você postou uma mensagem com algum otimismo. O que vislumbra para um futuro? E um futuro próximo?

Como disse, acredito que tempos obscuros formam gerações mais conscientes e libertárias. As próximas gerações saberão muito bem das atrocidades que estão sendo levadas a cabo agora, e os setores responsáveis por elas. Porém, para um futuro próximo, não vejo uma situação de melhora. Assim como as instituições, o povo brasileiro também está muito adoecido e perdido nesse processo todo. O ódio e a descrença, motores do novo fascismo, estão muito entranhados na população.

Em uma época de ataque a museus, por exemplo, vejo que você é um dos artistas que se preocupa e se posiciona de maneira combativa. Na sua avaliação, a classe artística tem feito o mesmo ou tem se omitido? E especificamente os quadrinistas?

É uma questão que também está ligada ao novo fascismo brasileiro, e é claro que precisa ser combatida por todos os artistas. Porém, a onda moralista contra as artes, na minha opinião, não passa de uma cortina de fumaça para tirar o foco de questões fundamentais do atual momento brasileiro: o risco que corre o nosso sistema democrático, a impunidade arquitetada entre os Poderes para livrar corruptos e os direitos que estão sendo roubados das classes trabalhadoras todos os dias.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.