Ele já viajou pelo Saara sobre trem de carga e conheceu mais de 130 países
Guilherme Canever já tinha perambulado por uma região cheia de minas terrestres e visitado um dos maiores cemitérios de navios do mundo antes de viver sua jornada mais peculiar pela Mauritânia. Tendo que ir de Nouadhibou, no litoral, até Choum, no noroeste do país africano, embarcaria em um trem que atravessaria o Saara. Na ferroviária lhe ofereceram bilhete para o único vagão de passageiros. Recusou. Faria como os locais: pularia em uma das duzentas composições de carga daquele trem com quase três mil metros de comprimento, considerado um dos maiores do mundo, e seguiria viagem pelos mais de 700 quilômetros de deserto. Aguentaria o rejeito de minério de ferro que gruda em tudo o que encontra pela frente, apostaria em roupas compridas e lenço ao redor da cabeça e do rosto para suportar o sol e curtiria a brisa enquanto a vista se perderia no cenário infinito. A jornada duraria cerca de 12 horas.
"Às vezes eu me sentava um pouco para descansar, mas tentava aproveitar ao máximo a luz do dia e me pendurava na escadinha o tempo todo. No entardecer, um espetáculo da natureza. Nas intermináveis planícies o pôr do sol foi lento, e a luz avermelhada ainda aparecia no horizonte mesmo quando já estava escuro. Em pleno deserto, não havia uma nuvem sequer, mas não dava para ver muitas estrelas porque a lua estava cheia e muito brilhante, deixando a noite muito clara […]. Assim como aconteceu ao entardecer, no início da noite todos os muçulmanos se alinharam e rezaram, mesmo com o trem em movimento. Uma cena belíssima. Depois nos reunimos e ficamos batendo papo, cada um contando um pouco sobre o que estava fazendo por ali".
O registro está em "Destinos Invisíveis – Uma Nova Aventura Pela África" (Pulp Edições), o quarto livro de viagem de Guilherme, que aproveita cada momento livre de seu trabalho para conhecer novos países pelo mundo. Na obra, o escritor viajante compila experiências vividas em uma série de viagens para a África feitas entre 2015 e 2018. Há passagens por 16 países que raramente entram no roteiro turístico de qualquer pessoa: Gana, Burkina Faso, Níger, Benim, Togo, Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Lesoto, Suazilândia, Zimbábue, Argélia, Tunísia (bem, esses três não são tão surpreendentes assim), Serra Leoa, Libéria, Guiné, Mali e a já citada Mauritânia.
Acostumado a dormir onde é possível, comer o que está disponível e viajar da forma que dá para viajar, dispensando luxos e abrindo mão do conforto, Guilherme conta que há quem brinque que ele não possui corpo, tamanha a tolerância às adversidades. "Se a única solução para um banho for um balde, não tem problema", conta ele no papo que batemos. "Não consigo nem chamar de perrengue viajar num trem de carga, num vagão cheio de minério de ferro, mas acompanhado de outras pessoas", diz ao lembrar da viagem pelo Saara. O próprio viajante, no entanto, assume que essa tolerância já foi maior. Com 42 anos, nota que não tem mais a mesma paciência para negociar com policiais ou militares corruptos até que consiga atravessar fronteiras sem precisar pagar eventuais propinas, por exemplo.
Na Libéria, a sequência de adversidades fez com que abreviasse drasticamente a estadia no país: na imigração, precisou apresentar o passaporte em, pelo menos, meia dúzia de guichês. Depois, seu hóspede o arrastou para um bar um tanto sinistro. De volta à casa, o barulho da televisão não o deixava dormir – e dormir era o que mais queria. Resolveu procurar um hotel no dia seguinte, mas se sentiu extorquido pelos preços que encontrou – coisa de 80 dólares num quarto sem janela. "Já vinha de um último dia em Serra Leoa que tinha dado tudo errado, depois, na Libéria, deu tudo mais errado ainda", recorda.
Essas foram as situações mais sérias que passou em suas andanças recentes pela África, onde encontrou um povo extremamente receptivo e países com atrações culturais e históricas que mereceriam mais atenção das pessoas de todo o mundo. Nesse sentido, destaca o Mali e a Etiópia, além de lembrar da Guiné. "Nunca imaginei que fosse gostar tanto de uma viagem pra Guiné. É um lugar maravilhoso para quem gosta de caminhadas por vilarejos e paisagens naturais".
O alerta de perrengue, contudo, segue ligado: "Se não quer perrengue nesses lugares, se quiser já reservar um hotel pela internet, ter tudo certinho, aí é muito caro. Daí gasta muito mais do que na Europa". Destino que talvez traga uma experiência diferente e contorne essas questões é a Tunísia, país africano que o escritor considera o mais fácil de se viajar "por conta dos atrativos, da proximidade, por ser pequeno, ocidentalizado…", enumera, para depois lembrar que quase metade dos turistas que vão para o continente procuram por somente três nações: África do Sul, Marrocos e Egito.
Estar disposto a encarar adversidades não significa que Guilherme acorde de manhã, compre uma passagem aérea, pegue sua mochila e saia viajando para onde lhe dá na telha. Para se preparar para as maiores dificuldades de boa parte das viagens – vistos, conhecer as particularidades políticas dos países, saber como irá se virar com o idioma… –, preocupa-se em estudar bastante cada um dos seus destinos antes de sair de casa. "Tomo cuidado para não ser inconsequente. Procure ler o máximo de informações possíveis sobre os países, saber quais são as épocas de chuvas, quais áreas estão ou não seguras…". Ainda assim, cada lugar guardará suas surpresas. "Os momentos mais interessantes acabam acontecendo por acaso, não dá pra planejar. No Níger que fui ver se dava ou não para caminhar no meio das girafas".
O primeiro livro de Guilherme, "De Cape Town a Muscat", também retrata uma viagem que fez pela África. Na ocasião, atravessou o continente de sul a leste, saindo da Cidade do Cabo, no extremo da África do Sul, e indo até o Djibuti, dando início a um volta ao mundo que duraria três anos. Viajando de Istambul, na Turquia, até a Índia, passando pelos países da Ásia Central, faria o rolê que resultaria em "De Istambul a Nova Délhi – Uma Aventura pela Rota da Seda". Já numa abordagem mais original, escreveu sobre suas andanças por nações que não são reconhecidas como países (Kosovo, Somalilândia, Curdistão…) em "Uma Viagem Pelos Países que Não Existem".
Na juventude, ao realizar o sonho de conhecer o Tibete, o Nepal e a Índia, que notou que era possível realizar grandes viagens sem gastar tanto assim. Já tendo passado por mais de 130 países, encara suas viagens como um hobby parcialmente remunerado, mas ainda bancado pela profissão de engenheiro florestal. Casado e com dois filhos pequenos, hoje privilegia destinos que sejam uma boa também para as crianças, por isso adiou o sonho de conhecer o Sudão ("eles têm muito mais pirâmides do que o Egito") e a Eritreia.
E do que tira de todas essas andanças pelo mundo? "Muda muito a cabeça. Quanto mais se viaja, mais se descobre e mais se quer viajar. O mundo se aproxima muito. Me sinto um pouco desses lugares que já conheci. A gente acaba tendo um amor muito grande pelo mundo. Penso muito mais em tudo, de maneira mais global. Estamos acostumados com a velocidade da informação, vemos muita coisa ruim acontecendo, mas o que me marcou muito é que voltei a acreditar na humanidade. Pra cada pessoa que dificulta uma viagem, tem dezenas que outras que ajudam, que acolhem, que recebem bem. É uma sensação muito boa de que as coisas vão dar certo".
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