Topo

Laurentino Gomes: A escravidão é latente, só está escondida sob o tapete

Rodrigo Casarin

23/08/2019 00h01

Laurentino em visita ao cubículo de uma senzala no Engenho Uruaé, na Zona da Mata de Pernambuco, com argola de ferro usada para imobilizar escravos. Foto de Carmen Gomes.

Maior território escravista do Ocidente ao longo de praticamente três séculos e meio, o Brasil recebeu quase 5 milhões de escravos africanos, 40% do total dos 12,5 milhões de homens, mulheres e crianças capturados em lugares como Angola e Benin e enviados para a América. País que mais tempo levou para acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir oficialmente a escravidão no continente, o Brasil se tornou a segunda nação com a maior população negra ou de origem africana do mundo, ficado atrás apenas da Nigéria.

Razões não faltavam para que o jornalista Laurentino Gomes – autor dos best-sellers "1808", "1822" e "1889" – mergulhasse na história de uma das práticas mais vergonhosas da humanidade para escrever sua nova trilogia. Nos últimos seis anos, o escritor garimpou documentos, conversou com historiadores, debruçou-se sobre cerca de 200 livros e viajou por países da América, da África e da Europa – 12 nações no total, sendo oito delas africanas – para traçar um amplo panorama e explicar as raízes e as consequências do tráfico de seres humanos no Atlântico ao longo da história.

O resultado dessa empreitada começa, enfim, a chegar aos leitores. "Escravidão: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares" (Globo Livros) abarca um período que vai de 1444, data do primeiro registro sobre portugueses comercializando escravos africanos, até a morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares, em setembro de 1695. Os outros dois volumes da série devem sair em 2020 e 2021 e focarão na escravatura em território brasileiro nos séculos 18 e 19.

"A escravidão e seu legado (presente, por exemplo, no preconceito racial) não estão confinados aos museus, livros didáticos e de história, como se fossem assuntos encerrados, tombados ou congelados no passado. São, em vez disso, parte de uma agenda cada vez mais urgente e decisiva na realidade brasileira e mundial de hoje", escreve Laurentino na introdução da obra – que pode ser lida aqui. No Brasil, "é recorrente o noticiário sobre pessoas submetidas a condições de trabalho análogas ao cativeiro", recorda o autor, para depois, apoiando-se em dados da British Anti-Slavery Society, mostrar com números como o assunto é urgente: estima-se "que existam, hoje, mais escravos no mundo do que em qualquer período durante os 350 anos de escravidão africana na América. Seriam 40 milhões de pessoas vivendo nessas condições".

Marca de seu trabalho, ao longo de "Escravidão" Laurentino aposta em bons personagens para prender o leitor. "Se você ficar só nos capítulos com as razões, números, dados, o texto fica muito denso. Com bons personagens, a história fica mais acessível, interessante, principalmente pro leitor leigo", diz o escritor no papo que batemos ontem por telefone. Dentre as figuras históricas que povoam a obra, o autor se fascinou especialmente por Zumbi dos Palmares. "Não só pelo que ele foi, mas porque há pouquíssimas informações sobre o Zumbi real. Talvez tenham existidos diversos Zumbis ao longo da história e esse que morreu em setembro de 1695 seria o último. O personagem mítico, imaginário, independente do real, é muito forte".

Quais foram as principais descobertas ao longo das pesquisas? Aquelas que mais lhe chamaram a atenção?

O que me surpreendeu está mais relacionado à dimensão, ao tamanho e à importância do legado desse tema. Nos livros didáticos, a escravidão é citada, mas não com a importância que ela tem de verdade na história do Brasil. É quase algo secundário se comparado com temas como a Independência ou personagens como Getúlio Vargas. Ao estudar, notei que esse, no entanto, é o assunto mais importante da história brasileira. Tudo o que somos tem a ver com as raízes e a história das raízes africanas. Todos nossos ciclos econômicos, do pau-brasil ao café, foram sustentados por mão de obra cativa.

Há um legado que aparece de três formas interessantes: primeiro, uma construção mitológica sobre a escravidão brasileira, como se ela tivesse sido menos dura, mais patriarcal. Isso gera o segundo mito: o da democracia racial brasileira, que hoje conseguiríamos conviver tranquilamente com o assunto. A confrontação disso se manifesta de duas maneiras: o preconceito, que está arraigado no nosso modo de ser e hoje está vindo à tona de forma surpreendentemente crua nas redes sociais e até em falas de grandes autoridades da República, e principalmente nas estatísticas de desigualdade social: renda, saneamento, empregos, criminalidade, violência, educação… Sempre há uma disparidade grande contra os negros.

Em algum momento sentiu um baque, uma tristeza, um desalento por conta de algum dado ou alguma história descoberta?

Senti um baque com essa segregação real que existe hoje. Lá nos Estados Unidos, por exemplo, na Geórgia, ainda tem shoppings que só negros frequentam, enquanto outros só brancos frequentam. Os espaços continuam sendo divididos, e diria que no Brasil também. Também vejo essa divisão de espaços nos shoppings de São Paulo

Como foram as viagens pela África?

Foram mergulhos culturais inesquecíveis, surpreendentes o tempo todo. A realidade é chocante. De um lado, um povo que adora brasileiro. Eles têm uma familiaridade com o Brasil que, infelizmente, nós não temos com eles. Acompanham nossas novelas, nossa música, nossa seleção… Mas é um povo muito pobre. E há o choque da modernidade: a mistura de prédios de vidros escovados com grandes favelas logo ao lado. Transformaram a África numa espécie de lixão da sociedade industrial, para onde mandam pilhas usadas, computadores quebrados, celulares velhos, carros velhos…

E a relação deles com a escravidão é diferente. Não existe clima de ajuste de contas, não falam em elite culposa. Lá a escravidão é vista com certa naturalidade, até porque é parte da história ancestral da África. O que existe é um ressentimento grande em relação ao colonialismo europeu mais recente, do século 19.

Laurentino com o guia Beni Nazáro na Rota dos Escravos, em Ajudá, na República do Benim. Foto de Carmen Gomes.

No livro você mostra isso, que a escravidão sempre acompanhou a história humana. Por que a dos africanos trazidos para a América, e especialmente para o Brasil, merece um olhar diferente?

Primeiro: o nascimento do racismo. A associação entre escravidão e a cor da pele é resultado dessa escravidão atlântica, inclusive com justificativa baseada na "Bíblia". A outra é o tamanho, a escala industrial dessa escravidão, com o uso de mão de obra cativa em larga escala nas lavouras, nas minas de ouro e diamante. Essa intensidade nas atividades econômicas é típica da escravidão africana na América, isso não existia antes.

Tem quem argumente que, como a escravidão sempre existiu e os próprios negros escravizavam uns aos outros, isso não seria exatamente um problema…

Isso tem muito nas redes sociais. Em todo lugar houve escravidão: negros escravizavam negros como brancos escravizavam brancos, chineses escravizavam chineses…Mas falam como se a culpa da escravidão fosse do escravizado. É uma visão racista, quase que supremacista. E argumentar falando de pan-africanismo é um anacronismo. Não existia essa identidade na África daquela época. Os povos eram rivais e guerreavam muito entre si, quem perdia era feito de escravo, como sempre foi.

No livro há uma certa esquiva, mas, na sua visão, existe dívida histórica?

Tratar dessa forma é perigoso. Isso inclusive acirra o racismo. Se você trata a escravidão como dívida histórica, significa que há um pagamento a ser feito por injustiças passadas. Mas os negros não são as únicas pessoas com dívidas históricas no país: há os índios, os ribeirinhos, os pobres, outros imigrantes que foram escravizados… Se você usar a cor da pele como critério, pode gerar questionamentos de outras classes que também sofreram.

Mas sou a favor não só de cotas para afrodescendentes em escolas, instituições públicas, empregos públicos, como sou a favor do Bolsa Família e outras formas de políticas públicas que ajudem a corrigir as diferenças, que ajudem a diminuir esse abismo de oportunidades que temos, para que, no futuro, todo brasileiro possa expressar plenamente seus talentos, suas vocações. Sou a favor das políticas públicas como investimento no futuro, não como pagamento de dívida histórica.

E como você relaciona essa escravidão histórica com o Brasil de hoje, com trabalho análogo à escravidão, diminuição dos direitos dos trabalhadores…?

Não diz respeito apenas ao Brasil, mas à própria história humana. Vemos políticas públicas importantes que foram conquistadas no passado e estão sendo desconstruídas ou destruídas com base em discursos até patéticos. Os absurdos que o presidente da República fala e todo mundo ri ou discute nas redes sociais é fumaça, porque por baixo disso tem muita coisa sendo negociada e sendo aprovada no Congresso, desconstruindo muitas coisas em várias áreas. Agora, a escravidão pode voltar? Acho que sim. Se houver uma grande crise tecnológica, ambiental, será que não voltaríamos a ser escravocratas como fomos no passado? Se você observar o comportamento humano na história e o discurso de muitos líderes, podemos acreditar que sim. A escravidão está latente, só está escondida debaixo do tapete.

Como você via a escravidão histórica quando iniciou essa empreitada e como a vê atualmente?

Houve uma mudança grande. Essa trilogia não é nem uma história da escravidão no Brasil, é uma história do Brasil vista pela ótica da escravidão. Achava que ia fazer uma pesquisa sobre um detalhe da nossa história, mas percebi que estava estudando a sua essência, seu código genético mais profundo. Entrei com a ideia de que teríamos tido uma escravidão mais branda, muito influenciado pela leitura de Gilberto Freyre, e fui descobrindo que não. Em qualquer lugar do mundo, o meio para escravizar e manter o escravizado sobre controle é a violência.

Hoje há diferentes narrativas sobre a escravidão. Há quem mostre uma história com mais confronto, com rebelião. Jogo luz nessa questão principalmente com o personagem do Zumbi dos Palmares. Há diferentes olhares para a escravidão: em alguns lugares há um olhar branco, em outros, olhares negros. E há também os olhares atentos, no qual tento me incluir.

[No livro Laurentino explica que, proposto pela embaixadora Irene Gala, os "olhares atentos" procuram assimilar a complexidade da história vista pelos olhares negros e brancos "e incorporam novos ingredientes ao seu relato e análise, dispondo-se a oferecer uma compreensão mais ampla e ao mesmo tempo mais sutil e refinada das relações Brasil-África"].

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, Youtube, Soundcloud e Spotify.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.