Em releitura da história de Davi e Golias, HQ mostra a banalidade da guerra
Na segunda temporada do podcast Projeto Humanos, sobre o islamismo e os conflitos no Oriente Médio, em certo momento o jornalista Ivan Mizanzuk conversa com um brasileiro que se mudou para os Estados Unidos no começo da década de 1990, obteve cidadania estadunidense e passou a integrar uma das principais forças militares daquele país. Apaixonado pela guerra, lembra muito bem de como reagiu aos ataques do 11 de setembro: de pronto lhe veio à cabeça que finalmente seria mandado para o campo de batalha e poderia sentar o dedo em seus inimigos. Pela voz, é possível notar que o soldado recorda disso com grande satisfação. Sim, o brasileiro acabou indo para algumas guerras defender os interesses da nação que lhe acolheu, matou uns tantos ali pelo Iraque e pelo Afeganistão e se orgulha bastante de sua carreira.
Foi um difícil exercício de empatia ouvir a história desse militar. Lembrei dela enquanto lia a HQ "Golias", do escocês Tom Gauld (Todavia). Na obra, acompanhamos Golias de Gate, soldado gigante que despreza o campo de batalha – pela sua vontade, dispensaria o front e passaria a vida cuidando de burocracias. Certo dia, no entanto, um desses cidadãos que adoram ser proativos com a vida dos outros sugere ao rei dos filisteus que aproveitem o tamanho de Golias para enviá-lo para a luta contra os israelitas. O rei aprova a ideia. Armadura, escudo, lança e um armeiro são oferecidos ao nosso herói e ele é despachado para desafiar os inimigos: "Escolhei um homem que venha até mim e que lutemos. Se ele for capaz de me ferir, então seremos vossos servos. Mas se eu o ferir, então vós deveis ser nossos servos", brada ao longo de dias, enquanto torce para que nada aconteça e ele não precise duelar. Como você já deve ter notado, estamos diante de uma releitura da famosa passagem bíblica na qual Golias encontra o pequeno Davi, com o foco no gigante normalmente encarado como o vilão da história.
Os traços simples do quadrinista alinhados às poucas cores que emprega e aos longos silêncios da narrativa provocam no leitor certa melancolia e levam a muitos momentos de reflexão. Golias não quer ir para a batalha, não vê sentido algum naquilo, mas, mesmo com todo o seu tamanho e suposta força, é alguém impotente diante das ordens dos superiores. Estes, por sua vez, pouco se importam com as vontades e sentimentos dos subordinados – ou do subordinado em questão –, meras ferramentas para a obtenção daquilo que lhes interessa. Impossível não se comover com o pacato e agora triste Golias, que precisa ignorar seus desejos mais genuínos para bovinamente cumprir as obrigações que lhe delegaram.
Golias é um bom soldado e não pensaria em contrariar as ordens dos superiores, mesmo não vendo sentido algum naquilo tudo. O final da jornada é previsível, inevitável – estamos falando de uma releitura da história bíblica, não custa lembrar – e quase besta, construído de forma a evidenciar quão banal é a guerra e, principalmente, a vida daqueles que fazem de fato a guerra. Ao cabo, o quadrinho nos faz pensar sobre o absurdo que é sair de casa para batalhar em nome sabe-se lá do quê, numa metáfora que pode ser aplicada a diversas situações cotidianas. Do absurdo que é ser tirado de seu canto, de seu lar, para matar ou morrer a mando de alguém. Golias é o extremo oposto daquele personagem do Projeto Humanos. Tom Gauld nos faz ter enorme simpatia por Golias.
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