História assustadora e descarte da literatura: o livro de Marie Kondo
Marie Kondo. Nas primeiras vezes que me deparei com esse nome, imediatamente meu cérebro entendeu Macondo. Precisei voltar à referência para me dar conta de que não estava vendo uma chamada ou comentário sobre a cidade imaginária na qual Gabriel García Márquez ambientou o seu "Cem Anos de Solidão".
Só que o nome da garota passou a pipocar cada vez mais por aí. Logo descobri que Marie Kondo é uma espécie de guru da faxina, uma japonesa que toca uma série de aparente sucesso na Netflix sobre como deixar sua casa sempre impecavelmente em ordem. Descobri também que a moça tem dois livros publicados no Brasil, ambos pela Sextante: "Isso Me Traz Alegria", de 2016, e "A Mágica da Arrumação", de 2015. Foi este que peguei para ler.
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Apesar de contar com 160 páginas, todas as dicas de Kondo para que alguém consiga arrumar uma casa se resumem a: coloque as coisas no chão, desfaça-se do que é desnecessário, organize o restante e cuide para que tudo sempre volte para o seu lugar após ser utilizado. Busque a perfeição. Junte isso a certo misticismo – recomenda que abracemos os objetos para que sintamos se eles nos fazem felizes e que os tratemos com gratidão para que se sintam bem – e pronto, aqui está toda a moça condensada em um parágrafo de pura autoajuda aplicada ao lar.
A história que conta de si, no entanto, é assustadora. Diz que logo aos cinco anos começou a se interessar por "revistas femininas sobre assuntos domésticos". A partir dos 15 já se dedicava "seriamente ao estudo de métodos para arrumar e organizar ambientes". Na escola, enquanto suas colegas brincavam, ia "arrumar as prateleiras de livros da sala ou verificar o conteúdo do armário onde guardavam as vassouras, sempre pensando que os métodos de arrumação adotados eram muito ruins".
Mais do que ter começado cedo, encontrou nos periódicos seu grande hobby: "quando crescei, meu passatempo preferido era ler revistas para donas de casa". Garante ter dedicado "quase 80%" de sua vida ao assunto. Aprendeu até que "as mulheres devem vestir peças femininas e elegantes para dormir. A pior coisa que podem fazer é usar um conjunto velho de moletom. Sim, dormir com roupas velhas é confortável, mas não é nem um pouco atraente – e isso tem um enorme impacto em sua autoimagem e, consequentemente, em sua autoestima". É triste pensar numa criança que deixa de brincar para ficar se preocupando com faxina; mulheres saberão dizer melhor do que eu o quanto de machismo transborda da história de Kondo.
Voltando ao colocar tudo no chão e fazer a limpa geral na casa, a guru recomenda que os livros sejam as vítimas iniciais do choque de ordem. Na primeira vez que foi dar um jeito em sua biblioteca usando como critério "a alegria que os livros" proporcionavam, conta, ficou com 100 volumes em sua estante. Achou muito. Foi lá e se forçou a reduzir a coleção a 30 títulos, às vezes arrancando páginas com passagens que gostava de algumas obras e descartando o restante do calhamaço – para ela, livro não passa de papel agrupado.
"Você fica alegre rodeado de livros que nunca leu e que sabe que não irão tocar seu coração? A resposta a essas perguntas deve ser 'não'", registra. Aqui, cercado por algumas centenas de livros que ainda desejo ler, não poderia discordar mais. Como posso saber se tocam ou não meu coração se ainda não os li? Para ela, livros que você planeja ler "algum dia" significa livros que você "nunca" irá ler. E aqui o erro é crasso.
Confesso que arrumação não é muito minha praia, mas de livros e leitura eu entendo alguma coisa. Às vezes o leitor pega uma obra e o santo logo bate, como se estivessem há tempos esperando um pelo outro. Às vezes ocorre o contrário: a repulsa é imediata e aí o método Kondo de descarte pode ser perfeitamente válido. Agora, em muitas ocasiões temos uma terceira alternativa: sabemos que um livro é pra gente, nos sentimos muito bem com ele e temos certeza de que em algum momento nos encantaremos com sua história. Dou um exemplo: tenho perto de mim um exemplar ainda lacrado de "O Vermelho e o Negro", de Stendhal. Deve estar ali há, pelo menos, dois anos, mas não temos pressa; já nos encontramos, o momento da leitura uma hora chega, isso acontece muito com a literatura.
E tem uma situação que, na visão da moça, deve ser ainda mais incompreensível. Em muitos casos a leitura não bate logo de cara, mas sabemos que aquele livro merece uma nova chance para "tocar o coração". Guardamos e esperamos pelo momento do reencontro. Coincidentemente, uma obra que é campeã nesse quesito é "100 Anos de Solidão". Conheço pessoas que só se encantaram com o clássico de Gabo lá pela terceira, quarta tentativa de leitura. Tivessem seguido as pregações de Marie Kondo, jamais teriam se apaixonado por Macondo.
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