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Ikinyujo: pela fé, monges se enterravam vivos para virarem múmias no Japão

Rodrigo Casarin

16/01/2019 10h44

"- Não sei muito sobre o budismo, então não entendo bem os detalhes – comecei. – Mas, se um monge faz o nyujo, isso significa que ele escolhe por livre e espontânea vontade entrar em um caixão e morrer, certo?

"- Exatamente. Como a expressão nyujo também pode ser usada para 'alcançar a iluminação', às vezes, para diferenciar, chamavam a prática de se enterrar de 'ikinyujo', isto é, 'fazer nyujo em vida'. Nesses casos, preparavam uma câmara de pedra subterrânea, com um tubo de bambu para a circulação de ar. Antes de se enterrar, o monge passava um período fazendo mokujiki, para preparar o corpo para que se transformasse em múmia depois da morte, em vez de se decompor".

Outro dia, lendo "Silêncio", de Shusaku Endo (Tusquets), descobri como budistas torturavam padres portugueses que tentavam empurrar o catolicismo goela abaixo dos japoneses para que os europeus se tornassem apostatas, para que renegassem a própria fé. Agora, com "O Assassinato do Comendador – Volume 1" (Alfaguara), novo livro do Haruki Murakami, descubro um pouco mais da cultura e da história dos budistas japoneses. Senti angústia e falta de ar só de imaginar quão sofrida deveria ser a morte de uma pessoa que se enterra em uma câmara para esperar pelo seu fim. Haja fé para segurar a bronca e virar múmia.

O mokujiki mencionado acima, logo explica um dos personagens, é "uma dieta à base de ervas e frutos, sem comida preparada nem cereais. A intenção seria eliminar do corpo, ainda em vida, o máximo possível de gordura e água, o que mudava a composição corporal e possibilitava que, após a morte, a pessoa fosse mumificada". No final de todo o processo, o suicida se tornava um sokushinbutsu, ou seja, um monge mumificado, que, acreditavam, alcançava a iluminação e "ultrapassava o ciclo da vida e da morte", contribuindo também "para a salvação do mundo dos vivos".

Quem dá boa parte da aula sobre como se tornar um sokushinbutsu é Menshiki, excêntrico milionário que aparece na vida de um retratista após este romper com a mulher e mudar para a casa de um antigo e bem-sucedido pintor, pai de um amigo da época da faculdade. Aos 36 anos, o protagonista anônimo tenta dar um novo rumo para sua carreira – quer largar os retratos feitos sob encomenda para se dedicar à própria linguagem artística – enquanto procura alicerçar suas próprias bases após o inesperado fim do casamento.

Sucesso comercial e frequentemente cotado como um possível vencedor do Nobel de Literatura, o que evidencia o respeito que existe com o seu trabalho, Murakami segue a cartilha dos best-sellers, mas entrega um texto muito melhor do que a imensa maioria dos romances que visam sobretudo as grandes vendagens. Em "O Assassinato do Comendador" os personagens são excêntricos e cativantes, a narrativa é cheia de surpresas e guinadas, os capítulos costumam terminar com algo que desperta a curiosidade do leitor e o ritmo é bastante ágil.

Também estão presentes os traços que apontam como algumas das principais características do autor: referência a Franz Kafka, diálogo com a história (pormenores da Segunda Guerra) e cultura ocidental (a ópera "Don Giovanni" de Mozart), a paixão pela música (que desta vez se manifesta com um personagem apaixonado por música clássica, não por jazz) e situações que deixam o leitor em dúvida: estaria diante de algo fantástico e surrealista ou imerso na confusão que acontece na cabeça do próprio protagonista, que talvez flerte com a loucura?

Ler Murakami é uma boa diversão, não há dúvidas, mas "O Assassinato do Comendador" passa longe de ser um livro perfeito, a começar por frases de gosto questionáveis que surgem aqui e ali ("não existe consequência sem causa, assim como não existe omelete sem ovo", por exemplo). Repetições também incomodam, bem como falhas na construção dos personagens. Um homem tímido e recluso, de poucas palavras mesmo, desanca a falar sobre aventuras sexuais com alguém que ainda mal conhece. Outro diz não ligar para carros e adorar cozinhar, mas repara em cada modelo de automóvel que vê e não se presta a relatar com detalhes o que comeu e quais vinhos bebeu em um jantar que, garante, só lhe foi servido do melhor (fiquei com uma baita curiosidade de saber o menu completo, assumo).

A prática do sokushinbutsu, que aparece em um momento-chave da narrativa, soa também como um dos caminhos para se compreender a história que ainda terá desdobramentos. Aguardemos para ver se algum personagem irá se trancafiar em uma câmara com um canudinho para fora e aguardar pacientemente pela morte e pelo trabalho do tempo para lhe transformar em uma múmia.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.