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Não sabe a diferença entre mito e ídolo de barro? Ler Stephen Fry é uma boa

Rodrigo Casarin

28/09/2018 09h56

O ator britânico Stephen Fry esteve com Jair Bolsonaro em 2013 e saiu assustado da conversa para o documentário "Out There", da BBC, sobre o avanço do ódio contra LGBTQs pelo mundo – definiu aquele encontro com o então deputado federal como "sinistro" e afirmou que Bolsonaro era um homofóbico típico. Nesta semana, por conta da nossa corrida presidencial, o ator de 61 anos voltou a falar sobre o agora candidato em um vídeo que circula pela internet. Nele, diz que "O Brasil é melhor do que Bolsonaro", que este "vive em um mundo de fantasia, de militarismo" e que não sabe exatamente de onde suas ideias são tiradas, mas "parece ser de um lugar muito sombrio, assustador e incrivelmente ignorante".

Tendo se posicionado dessa forma contra aquele que é chamado por parte de seus seguidores de "mito", chega a ser irônico que o primeiro livro de Fry no Brasil, que será lançado agora em outubro pela Planeta Minotauro, novo selo da Planeta dedicado à ficção especulativa, fale justamente sobre entidades mitológicas. Em "Mythos: As Melhores Histórias de Heróis, Deuses e Titãs" o autor dedica seu olhar a revisitar famosas passagens da mitologia grega, universo que lhe fascina desde pequeno. Me parece uma boa para que muitos por aí entendam o que é, de fato, um mito.

Particularmente, uma passagem de tal mitologia que costumo relacionar ao nosso momento é quando Pandora contraria Zeus e abre a caixa que jamais deveria ser aberta. Na versão de Fry, o recipiente é um frasco, mas o estrago que faz ao ser maculado é o mesmo. "Como uma nuvem de gafanhotos, as criaturas gritavam e gemiam, arranhavam o ar e rodeavam o jardim abaixo num grande remoinho, antes de alçar voo e se espalhar por cima da cidade, pelo campo e pelo mundo todo, estabelecendo a pestilência onde quer que o homem habitasse", relata sobre o que vazou daquele frasco. E continua:

"E o que eram essas formas? Eram mutantes, descendentes dos filhos escuros e maus de Nix e Érebo. Eles nasceram de Apate, o Engano; Geras, a Velhice; Oizus, a Miséria; Momo, a Acusação; Queres, a Morte Violenta. Eram brotos de Ate, a Ruína, e de Éris, a Discórdia. Seus nomes eram: PONOS, a Privação; LIMOS, a Fome; ALGOS, a Dor; DISNOMIA, a Anarquia; PSEUDÓLOGOS, as Mentiras; NEIKEA, as Brigas; ANFILOGIAS, as Disputas; MACAS, as Guerras; HISMINAS, as Batalhas; ANDROCTASIAS e FONOS, os Homicídios e os Assassinatos. Doença, Violência, Engano, Miséria e Necessidade tinham chegado. Jamais deixariam a Terra" – palavras escritas em caixa alta, o que me desagrada, são por conta do próprio autor.

Assustada, Pandora fecha o frasco o mais depressa possível, mas praticamente todas as criaturas já tinham tomado o nosso mundo. Apenas uma permaneceu para trás, manteve-se aprisionada no regalo dado por Zeus. Era Élpis, a Esperança.

Os mitos de verdade servem para isso: nos fazer refletir, extrapolar o nosso umbigo, nos apresentar uma verdade maior do que a mera verdade factual, retratar toda a complexidade que há ao nosso redor e, ao mesmo tempo, em nós mesmos. Não há dúvidas de que todos os males espalhados por conta da curiosidade de Pandora estão por aí, mas está mesmo aprisionada a Esperança? Talvez. Só que me parece que ela começa a colocar a cabeça para fora do frasco – ou da caixa. Vejo cada vez mais gente notando que certos mitos contemporâneos não passam de meros ídolos de barro.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.