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Hilda Hilst e sua literatura que “não dá para ser lida à beira da piscina”

Rodrigo Casarin

20/07/2018 10h09

Uma mulher que "escrevia em busca do sublime, da ultrapassagem de nossas tolices cotidianas". Um "ponto cardeal da literatura brasileira", autora de "lirismo amoroso, rigorosamente feminino e carnal", com uma "prosa transgressiva e provocadora". Uma mulher que teve "coragem em exigir para si uma liberdade social e sexual que a época na qual vivia sufocava com convenções morais". Artista com incrível "consciência da própria obra" e "trajetória independente, que construiu sem se vincular a nada do que acontecia no Brasil". Dona de trabalhos que desferem socos no estômago dos leitores, que revelam a busca pela alma, que investigam o divino e levantam discussões sobre o totalitarismo.

Essas são algumas definições para Hilda Hilst, a autora homenageada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2018, que acontece entre os dias 25 e 29 deste mês. Hilda nasceu em Jaú, em abril de 1930, formou-se em Direito pela USP e dedicou quase que toda a sua vida à literatura, deixando uma obra de extremo respeito que passa pela poesia, pela prosa e pelo teatro. Dentre as dezenas de títulos que publicou, destacam-se "Cantares de Perda e Predileção", "Rútilo Nada" e "A Obscena Senhora D". Recebeu prêmios como o Jabuti e o APCA e está traduzida para o inglês, francês, espanhol, basco, alemão, italiano, norueguês e japonês.

Na década de 1990, insatisfeita por alcançar menos leitores do que gostaria, desistiu de fazer o que considerava "literatura séria" e iniciou uma empreitada pela pornografia. É nesta fase que surgem títulos como "Caderno Rosa de Lori Lamby", uma patada no mercado editorial em forma de livro erótico narrado por uma garotinha de oito anos. Hilda morreu em 2004, aos 73. Desde então, em partes por conta da Globo, a primeira grande editora a colocar toda sua obra em catálogo, no início dos anos 2000, algo que ela sempre buscou em vida está acontecendo: o interesse pelos seus escritos cresce paulatinamente tanto entre leitores quanto entre pesquisadores e seu nome se consolida dentre os gigantes da literatura brasileira.

Hilda na Casa do Sol.

A força de Hilda

Para o crítico literário José Castello, o ponto mais importante da obra de Hilda é o entrelaçamento entre o divino e o humano, aspecto ressaltado por muitos fãs da autora. "Ela escrevia em busca do sublime, da ultrapassagem de nossas tolices cotidianas. No entanto, depois de todo o esforço e da longa travessia, era ao humano – nu, exposto, obsceno de tanta humanidade – que ela chegava novamente".

Na visão de Castello, Hilda tinha escrita feroz e se preocupava menos com o estilo e com o "escrever bem" e mais em utilizar as palavras para expressar as suas verdades, muitas vezes duras e devassas. "Num tempo como o nosso, regido não pela verdade mas pelas convicções, nada melhor do que o forte, até cruel, encontro com a verdade que a literatura de Hilda promove. Uma literatura, portanto, que não dá para ser lida à beira da piscina, ou na sala de embarque. Porque é uma ficção em que as palavras fervem, ferem e agitam o leitor".

Ainda nesse sentido, Castello confronta os escritos da autora com livros atuais. "A obra de Hilda tem sobretudo a nos oferecer coragem intelectual. Vivemos tempos mornos. Tempos do que chamo de 'literatura comercial' – uma literatura 'bem feita', sem riscos, atrelada ao mercado e ao sucesso imediato. Uma literatura, sobretudo, que tem medo de se arriscar e medo de erro. Hilda nunca teve medo de se colocar em risco. Sua obra é uma viagem cega ao coração do humano. Feita de impulsos, de visões, de pesadelos, mas também de muita leitura e muita meditação. Uma literatura de alto risco – isso Hilda nos dá e disso precisamos tanto hoje em dia".

Também crítico literário, Italo Moriconi, que recentemente falou sobre a autora em um curso do Instituto Estação das Letras, destaca de Hilda o "lirismo amoroso, rigorosamente feminino e carnal" e a "prosa transgressiva e provocadora, feita de cenas questionadoras de quaisquer convenções". Ele a admira principalmente por ter tido a "coragem de ser anticonvencional, moderna e atemporal" e oferecer aos leitores uma prosa que "se presta a belíssimas oralizações".

Poesia, prosa, teatro, contato com o além…

Para Moriconi, o trabalho teatral de Hilda, que assinou peças como "As Aves da Noite" e "O Visitante", ainda merece uma atenção maior do que a recebida até aqui. No entanto, com o aumento do interesse pela autora, de certa forma coroado com esta homenagem da Flip, diversos lançamentos relacionados à artista estão chegando ao público. No ano passado a Companhia das Letras já havia reunido seus versos em "Da Poesia". Agora, lança "Da Prosa", coletânea dividida em dois volumes, e um par de livros de poemas: "Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão" e "De Amor Tenho Vivido".

A vida de Hilda está esmiuçada em "Eu e Não Outra", sua primeira biografia, assinada pelas jornalistas Laura Folgueiras e Luisa Destri e publicada pela Tordesilhas. A Nova Fronteira, por sua vez, lançou "132 Crônicas: Cascos & Carícias e Outros Escritos", com textos (20 deles inéditos) da autora sobre temas do cotidiano. Já o teatro mencionado por Moriconi fica por conta da L&PM, que dividiu as peças em dois volumes intitulados "Teatro Completo". E pela editora do Sesi, finalmente, há "Hilda Hilst Pede Contato", versão em livro do filme homônimo dirigido por Gabriela Greeb, que também chega ao público junto com a Flip.

"Hilda Hilst Pede Contato", aliás, retrata uma das atividades mais excêntricas da autora: a tentativa de dialogar com os mortos, que intitulou de "Transcomunicação Instrumental". Na década de 1970, Hilda montou toda uma aparelhagem para tentar se conectar com o espírito – ou algo que o valha – de pessoas que já tinham morrido e registrou esses experimentos com gravadores. Nesses arquivos, há passagens dela pedindo contato com o povo de outra dimensão, questionando se os finados continuam a existir em alguma esfera e chamando por gente querida, como Clarice Lispector, Osman Lins e Cacilda Becker, além de tentar falar com Vladimir Herzog, que sequer conhecia pessoalmente, para descobrir se ele havia sido assassinado pelos militares.

O filme retratando esses momentos estará no centro das atenções em uma das conversas da Flip: "Performance Sonora", que abre a programação da quinta-feira, às 10h. Curadora desta edição da Festa, Josélia Aguiar lista quais assuntos caros à homenageada deverão figurar no evento: "Nós temos temas que vão e voltam no percurso das mesas: o amor, o desejo, a perda, a morte, Deus, a transcendência, a transgressão na arte, o limite entre o humano e o animal, a escrita de si, a reinvenção da linguagem, a escuta e as vozes, a memória da língua…".

Nos últimos dez meses, Josélia se aprofundou na vida e na obra de Hilda. Emergiu deste mergulho com uma série de surpresas: a "incrível profusão de leituras" da escritora, a "consciência que tinha da própria obra", a "trajetória independente que construiu sem se vincular a nada do que acontecia no Brasil" da sua época e "o desafio que oferece, em sua complexidade de questões e linguagem, como literatura do século 21".

Hilda e duas jovens autoras

Essa presença em nosso século também se reflete na influência que Hilda exerce sobre colegas de letras. Juliana Leite, recém-vencedora do Prêmio Sesc na categoria romance por "Entre as Mãos" (Record), é um dos nomes que assume ter sido fortemente impactada pela autora de "Tu Não te Moves de Ti", um dos livros que mais lhe mancaram. "Vejo a Hilda Hilst como um 'lugar artístico' em si, um ponto cardeal da literatura brasileira. Percebo nela uma referência artística importante especialmente naquilo que toca uma noção de risco – não só em termos de linguagem e das questões auto impostas, como também no empenho em certo desconforto, na resistência à repetição de si mesma. Me parece algo importante para se ter em mente".

Dentre as leituras da autora, Juliana também destaca "Estar Sendo. Ter Sido", livro que considera "indomável". "Em trama e linguagem nada parece ser finito e, no entanto, é a própria finitude que impulsiona os giros. Há algo de incapturável naquelas páginas, uma observação muito forte e diversa sobre o desamparo. Para mim, como leitora, é exatamente essa complexidade que singulariza a Hilda".

Autora de "Romanxorcismo" (Penalux), Marcia Dallari aprecia a literatura fantástica, mas foi encontrar sua voz enquanto autora no erotismo. Procurando fugir de "clichês ridículos" do gênero, aprendeu muito ao ler autoras como Anaïs Nin, "com seu erotismo fino e delicado", e, claro, Hilda Hilst, "com sua pornografia obscena e profunda".

"O que mais me admira nessas mulheres, além do talento como escritoras, é a coragem em exigir pra si uma liberdade social e sexual que a época na qual viviam sufocava com convenções morais. Tinham a vida pessoal julgada com a mesma severidade com que suas obras eram criticadas. E mesmo assim nunca se calaram e, no caso de Hilda, suas palavras desbocadas e provocadoras eram moldadas na ponta da língua e na ponta dos dez dedos sobre a máquina de escrever, sempre com a intenção de chocar os meios mais comportados", diz Márcia.

Ao falar sobre "O Caderno Rosa de Lori Lamby", a escritora lembra que foi difícil se deparar com a história da menina de oito anos que vende seu corpo incentivada pelos seus pais e sente prazer com isso, mas que aos poucos passou a notar o valor do título. "A linguagem da criança e suas palavras de erotismo cru eram tão fibrosas para o meu paladar que precisaram de várias mastigadas até eu realmente apreciar o seu sabor". Ao cabo, viu na "lucidez tão absurda" de Hilda um exemplo de como se expressar. "Letra após letra, tentarei ser o mais obsessiva e obscena que eu puder".

Marcia Dallari: "Letra após letra, tentarei ser o mais obsessiva e obscena que eu puder".

O futuro de Hilda

Desde 2009, quem cuida de todo o legado deixado por Hilda é Daniel Fuentes, herdeiro de seus direitos autorais. É ele quem articula projetos editoriais e administra a Casa do Sol, chácara em Campinas onde a escritora viveu por quase 40 anos, sempre acompanhada de algumas dezenas de cachorros. O espaço foi tombado pelo Condepacc e transformado em centro cultural e sede do Instituto Hilda Hilst. Daniel conta que, logo depois de assumir o espólio da artista, deparou-se com um passivo de R$3 milhões. A dívida lhe obrigou a encarar tudo relacionado à antiga amiga de forma realmente profissional, o que ajudou a estabelecer o nome da escritora e a fazer com que ela ganhasse novos admiradores. "Hoje há uma recolocação editorial para atingir novos públicos, entrar nas escolas, fazer a Hilda, como ela sempre quis, ganhar cada vez mais leitores", diz Daniel. E é com esse olhar que ele comenta o que ainda há por vir:

"Em algum momento os diários e agendas da Hilda chegarão ao público. Talvez parte disso já apareça na biografia que a Ana Lima Cecilio publicará no ano que vem. Haverá também um momento para a Hilda artista plástica. Pouca gente sabe, mas ela pintou e desenhou a vida toda de forma muito diversa, desde charges ou tiras até pinturas mesmo. Da literatura, ainda há muita poesia inédita. Mapeá-las depende de uma mergulho profundo e sistematizado nos acervos do instituto, na biblioteca, mas marginálias… Só de marginálias temos 300 mil digitalizações para serem feitas, nem tudo ali é inédito, óbvio, mas tem um material bruto imenso para explorarmos. Haverá assunto novo sobre a Hilda por muito tempo. Agora, no dia seguinte à Flip, deveremos focar muito no exterior, em novas traduções".

Juliana Leite: "Vejo a Hilda Hilst como um 'lugar artístico' em si, um ponto cardeal da literatura brasileira".

O que ler?

Se interessou por Hilda, mas não sabe por onde começar a ler a obra da autora? Voltemos aos críticos literários, então. Tanto Castello quanto Moriconi consideram a poesia a melhor porta de entrada para tal universo. "Ela é feroz, corajosa, desafiadora, mas conserva um fio de delicadeza e de lirismo (ainda que tosco, sangrento), que sua ficção em geral exclui", argumenta Castello.

Moriconi indica que um segundo passo seriam as narrativas de "Pequenos Discursos, E um Grande" e a novela "Rútilo Nada", para finalmente chegar em "A Obscena Senhora D", que considera a obra-prima da escritora na prosa. "Para os adultos, as obras pornográficas de Hilda são clássicos da literatura obscena em em língua portuguesa, junto com Bocage, Gregório de Matos e Glauco Mattoso", afirma.

"A ficção de Hilda é para os fortes. Ela mesma temia a respeito dos efeitos de sua escrita sobre seus leitores. Perguntava-se se era justo levá-los a tão longe. Se era ético invadir-lhes de modo tão brusco o espírito. Claro que a resposta é sim, valeu a pena todo esse seu apego à transgressão. Os livros estão aí como provas", pondera Castello. A obra, como bem disse, está aí, cabe a cada leitor descobrir qual Hilda mais lhe agrada.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.