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Futebol, política e guerra: Sérvia já teve hooligans como paramilitares

Rodrigo Casarin

26/06/2018 08h14

Arkan, o carniceiro.

As comemorações dos suíços Shaqiri e Xhaka após os gols que marcaram na partida contra a Sérvia escancararam o quanto futebol e política são indissociáveis, por mais que alguns torçam o nariz para isso. De origem kosovare, os dois jogadores festejaram seus tentos fazendo o sinal da águia de duas cabeças, uma referência à bandeira da Albânia. A maior parte da população de Kosovo, que luta para se tornar plenamente independente da Sérvia, é formada justamente por albaneses.

Uma estreita relação entre bola e política não é novidade naquela região do mundo. Ao longo da história, truculentos mandatários locais utilizaram clubes de futebol para atrair simpatizantes de suas causas e alicerçar exércitos. O tom beligerante tomou conta do esporte e as equipes passaram a representar bastiões de nacionalismos diversos. Essa delicada e problemática relação está bem retratada em "Como o Futebol Explica o Mundo", de Franklin Foer (Zahar).

No capítulo dedicado aos conflitos nos Bálcãs, um momento chama a atenção e envolve justamente um dos times mais populares da Sérvia, próxima adversária do Brasil na Copa da Rússia. Veja o que o autor fala sobre o Estrela Vermelha, campeão da Champions na temporada 1990-1991:

"A equipe era uma metáfora do esfacelamento da Iugoslávia. Apesar de sua história de veículo do nacionalismo sérvio, o Estrela Vermelha tinha jogadores de todo o país, até mesmo um vociferante separatista croata. Cada Estado da antiga Iugoslávia desenvolvera estereótipos étnicos amplamente aceitos, que os comentaristas esportivos transpunham para os jogadores. Os eslovenos eram soberbos defensores, correndo incansavelmente atrás dos atacantes adversários. Os croatas tinham um pendor germânico para aproveitar oportunidades de gol. Bósnios e sérvios mostravam criatividade em dribles e passes, mas ocasionalmente lhes faltava sagacidade tática. No Estrela Vermelha, um amálgama de diferentes iugoslavos reunia suas especialidades e vencia as superpotências da Europa Ocidental".

O que poderia representar uma chance para a Iugoslávia multiétnica, no entanto, serviu de ponto de partida para um movimento que seguiu o caminho contrário. "A partir das próprias fileiras do clube, uma organização paramilitar de hooligans foi formada e armada. Os torcedores do Estrela Vermelha se tornariam as tropas de choque de [Slobodan] Milosevic, os mais ativos agentes da limpeza étnica, genocidas altamente eficientes". É fácil imaginar que o mesmo acontecia com outros grupos em outros clubes da região, o que descambou na barbárie de maio de 1990, quando o Estrela Vermelha enfrentou o Dínamo Zagreb, da Croácia – que, na época, era parte de uma Iugoslávia que colapsava contra a vontade sérvia.

De início, gritos ofensivos, faixas sendo rasgadas e algumas animosidades mais agressivas. Mas logo as coisas realmente ficaram feias no estádio Maksimir, na capital croata. "As cercas que separavam as duas torcidas desapareceram misteriosamente. A briga tomou conta do estádio, com os combatentes identificados pelas cores das camisas, e então avançou para o gramado. A polícia mostrou-se inepta para enfrentar a situação. Quando um policial bateu num torcedor de Zagreb, um jogador do Dínamo chamado Zvonimir Boban interveio, atingindo o policial no pescoço com uma tesoura voadora". Helicópteros precisaram descer no campo para retirar os jogadores sérvios do quebra-pau.

O método que os brigões utilizaram para romper as grades mostra o quanto realmente estavam focados em garantir a guerra campal. "Torcedores croatas tinham estrategicamente armazenado ácido, de modo a poderem derreter as cercas que os separavam de seus rivais sérvios". Além disso, as duas torcidas já tinham se municiado de antemão, estocando um arsenal de pedras que seriam utilizadas na briga.

O jogador Boban batendo em um policial.

O resultado do conflito movido muito mais por sentimentos nacionalistas do que pelo fanatismo pelo futebol? Oficialmente, 117 policiais e 66 torcedores feridos. Mas é provável que muito sangue tenha sido ocultado, mantido longe dos números. Além disso, há quem aponte aquele momento em Zagreb como o início da Guerra Civil Iugoslava, que durou mais de dez anos, deixou cerca de 140 mil mortos e mais de quatro milhões de desabrigados. Para os sérvios, ainda foi uma oportunidade de definir suas tropas de carniceiros, conta Foer:

"Sem um exército regular confiável, os líderes sérvios começaram, discretamente, a montar forças paramilitares. O Delije de Arkan [grupo liderado pelo cruel Arkan, mais tarde apontado como criminoso de guerra] revelou-se um irresistível veículo de recrutamento. Afinal de contas, o Delije tinha a reputação de praticar uma violência cruel e depois celebrá-la em suas canções ('Machados na mão/ e uma faca nos dentes/ vai ter sangue esta noite'). Comandados por Arkan, seus membros agora operavam segundo uma hierarquia cuidadosamente delineada, que obedecia às ordens de um único líder. E, como provaram contra o Dínamo de Zagreb no famoso jogo transmitido pela TV, na realidade gostavam de enfrentar os croatas. O governo preferia esse estilo hooligan. A Sérvia não precisava de tropas convencionais para enfrentar um exército inimigo. Era raro ocorrer esse tipo de combate nos Bálcãs. O governo necessitava de uma força que pudesse aterrorizar os civis, fazendo com que muçulmanos e croatas fugissem de seus lares nos territórios que os sérvios esperavam controlar".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.