O Brasil não tem grandes romances sobre futebol? Esse mito está morto!
Durante muito tempo existiu no Brasil a ideia de que nossa literatura era falha em um ponto: não ter seu grande romance sobre futebol. Apesar de gigantes terem textos breves, principalmente crônicas, sobre o esporte (Drummond, Nelson Rodrigues…), e de termos títulos excelentes de não ficção ("O Negro no Futebol Brasileiro", Mario Filho, "Estrela Solitária", Ruy Castro…), faltava ao leitor brasileiro uma longa ficção sobre o mundo da bola.
Pois esse mito foi colocado contra a parede em 2013, com o lançamento do ótimo "O Drible", de Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras), um livro de futebol, mas também (ou principalmente) a respeito da relação entre pai e filho. Para muitos, sem dramas, era o suficiente para que pudéssemos afirmar que finalmente o Brasil tinha seu grande romance ludopédico. Outros, no entanto, permaneciam desconfiados, diziam que "O Drible" não era exatamente sobre futebol, que não era só sobre futebol (esquecendo-se que a boa literatura não costuma ser monocórdica) ou que a obra de Sérgio era apenas a exceção que comprovava a regra (uma evidente contradição).
Em todo caso, se alguém achava que o mito de que o Brasil não tinha um grande romance sobre futebol estava no máximo combalido, mas não morto, por conta de "O Drible", agora essa nossa carência literária está definitivamente aniquilada graças a Mário Rodrigues e o seu "A Cobrança". Hoje o país não possui apenas um, mas pelo menos dois grandes romances sobre futebol. Então, até podem cobrar uma produção maior, mas o mito inicial já está enterrado.
Publicado no início do ano pela Record, "A Cobrança" se divide em três frentes. Em uma temos a corrida à presidência em 1989, a eleição de Fernando Collor de Mello, o caos econômico instaurado no país e o impeachment do "Caçador de Marajás", seguido por uma breve pincelada do mandato de presidentes que o seguiram. Na outra, a problemática relação entre um casal, com a mulher sendo expulsa de casa e o pai pererecando para manter a sanidade, controlar a agressividade e conseguir criar seu filho em meio à loucura política e econômica.
Por fim, temos esse filho, Saúva, já adulto. Jogador, transformou-se no volante da seleção brasileira que está em campo contra a Alemanha na final da Copa da Rússia. Amantado pela camisa 8, cabe a ele, após empate no tempo normal e prorrogação, executar a cobrança do último pênalti verde e amarelo. Os alemães, maquinais, já converteram os cinco a que tinham direito. Se Saúva não fizer, é o penta dos europeus. Se marcar, o Brasil segue vivo, ainda podendo sonhar com a taça e, para muitos, o revide do 7X1, trauma que assombra aquela seleção da qual o protagonista é parte.
O volante nasceu em 1988, junto com a Constituição, de onde, do artigo 5º, é tirado o trecho de abertura de cada capítulo – sempre começam com "Todos são iguais perante a lei…", o que soa até cômico em nossos dias. Então, nas duas primeiras frentes citadas, temos a contextualização da realidade do lar e a realidade do país onde Saúva cresceu, o que soara familiar a muita gente. Por mais que sejam ótimos momentos, são os instantes da cobrança – que em certa altura se abre em duas possibilidades: a cobrança do penal em si ou a cobrança que Saúva poderia fazer de tudo o que o Brasil lhe prometeu, mas não cumpriu – que merecem todos os elogios.
É simbólico que Saúva tenha a obrigação de converter seu pênalti não para que levante a taça – e ele é o capitão, ele que a levantará em caso de sucesso final -, mas para que a seleção continue viva na disputa. Parece essa ser uma eterna condição dos brasileiros: fazer para ter uma sobrevida, errar para cair em desgraça; de um lado o cadafalso, do outro, o momento seguinte e a nova luta pela sobrevida, não a glória suprema. "Faça sua obrigação e receba a indiferença. Heroísmo são os outros", reflete o voltante.
Mas Saúva, que aprendeu a dominar e tocar com precisão, que nunca deu um drible, mas também não errou passes importantes ao longo da carreira e jamais perdeu um carrinho providencial, é malicioso, sabe que seu nome pode ser eternizado por outros meios. "A vilania pode ser minha, exclusivamente. Eu sei que o protagonismo também chega às avessas. Se não posso ser o herói, posso ser vilão. Há uma galeria deles: Barbosa e o seu frango, 1950; Zico e o pênalti mal batido, 1986; Baggio e a bola isolada, 1994; Zidane e a cabeçada contra Materazzi, 2006".
Os pensamentos de Saúva, no entanto, são diversos. Enquanto se preparava para a cobrança, repassava a história da seleção. "O locutor irá lembrar de bellini, mauro, carlos alberto torres, dunga e cafu (…) e no final desta genealogia fantástica estará você, o sexto, o capitão do hexa (…) o narrador falará que o grande erro da copa anterior, jogada em casa, estivera na escolha do capitão – um chorão, um fraco, que saía jogando com o lado de fora do pé (você sempre chamou de 'trivela'), mas tinha medo de cobrar pênaltis decisivos e que se sentava na bola como criança e vertia lágrimas patéticas como menina (…) saúva não, nunca viram você chorar, nunca".
Mário é um grande escritor. Seu primeiro livro, "Receita Para se Fazer um Monstro" (Record), levou o Prêmio Sesc de Literatura na categoria Contos e arrancou elogios de muita gente por poder ser encarado também como um romance. Eu não concordo exatamente, falei sobre isso aqui, mas é inegável que aquela estreia já apresentava uma voz poderosíssima – original, impiedosa, dura, que não faz concessões – à literatura brasileira. E mais do que talento com as palavras, me parece que Mário passou a vida perdendo tampa de dedão na rua, se enlameando em peladas ou ao menos sofrendo com o futebol nas arquibancadas ou diante da televisão, o que faz toda a diferença. "A Cobrança" é um livro não só de um grande escritor, mas de um grande escritor que compreende a alma desse esporte, que entende perfeitamente seus mitos e símbolos, o que contribui decisivamente para o sucesso do romance.
Se em 2002 "Deixa a Vida me Levar", de Zeca Pagodinho, se transformou na música do penta, neste ano, caso a seleção brasileira conquista a taça, tem um livro para adotar como o romance do hexa (tá, sei que a literatura jamais alcançaria tal condição, mas sonhemos um pouco…). "A Cobrança", aliás, reflete o mundo no qual os 23 jogadores cresceram: a média da idade da seleção é de 28 anos e todos poderiam ser parceiros de Saúva em campo. E finalmente "O Drible", do outro Rodrigues, o Sérgio, está bem acompanhado, tem um parceiro a altura no esfacelamento do papo de que o Brasil não tem grandes romances sobre futebol.
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