Saiba por que a Maratona de Boston é a mais desafiadora das corridas de rua
Naqueles momentos que antecedem a prova, comecei a papear com um desconhecido. Eu na minha primeira meia maratona, ele já veterano na distância. Eu pensando em fazer os 21km entre 2h30 e 2h35, ele dizendo que aquele era um dos percursos mais difíceis que conhecia por conta das subidas do centro de São Paulo. Ferrou! Mas fui, claro. E até que fui bem, acho. Terminei em 2h24m44s. Nunca antes na história deste país houve tanta honra num 3638º lugar. Se o colega jornalista e corredor Sérgio Xavier Filho obtivesse um resultado parecido, contudo, acho que ele se jogaria de alguma ponte, talvez do Minhocão.
Em "Boston – A Mais Longa das Maratonas", livro que a Arquipélago acaba de lançar, Sérgio conta que começou a correr logo pela meia maratona do Rio de Janeiro, uma das mais difíceis do país (as subidas e o calorão são cruéis). Na cabeça do autor, as partidas de futebol e tênis que jogava durante a semana lhe garantiriam o preparo físico para encarar os 21km. "Um mês antes da prova do Rio, confirmei minha inscrição sem perceber que havia algo errado. Ninguém começa em provas de rua por uma distância dessas. O que poderia parecer arrogância era apenas ignorância". O resultado? Até cruzou a linha de chegada no Rio, mas completamente capenga:
"Em minha contas delirantes, imaginei que conseguisse correr cada quilômetro em pouco mais de cinco minutos. O cansaço chegou no quilômetro 14, na altura do Botafogo. No 17, virou cansaço profundo para logo em seguida se transformar em colapso. Subitamente perdi a vontade de continuar correndo. Caminhando, senti raiva de mim mesmo. Como podia desanimar daquele jeito? Somente mais para frente que eu entenderia o que havia acontecido. Com uma hidratação precária, perdi sair minerais com o suor. Fiquei envergonhado por caminhar tanto tempo, aquelas 2h10 equivaliam a um 7 a 1 na cabeça quando ainda nem se imaginava o significado de um 7 a 1".
Pô, o cara fez a primeira meia maratona sem preparo específico algum em 2h10 e está reclamando. Eu me preparei durante um ano, corri no ritmo do hipopótamo manco, fiz em 2h24 e tô satisfeito. Tem algo estranho aí, não? Mais ou menos.
No livro Sérgio lembra que o ser humano pratica a corrida basicamente por três razões. Uma delas é "conhecer gente". Nem vou me aprofundar nesse aspecto, não consigo imaginar maneira pior de sociabilizar, ainda mais depois que inventaram o bar. A segunda razão é onde me encaixo: queimar gordura, correr para tomar cerveja e comer fraldinha com gorgonzola. Já o autor está no último grupo: daqueles que correm para "zombar da morte".
"Nem todos os atletas amadores são contaminados pelo vírus da competitividade, mas quem é não se livra dele tão fácil. A competição, neste caso, não ocorre contra um inimigo externo. Na corrida, geralmente o 'eu de hoje' tenta ser melhor do que o 'eu de ontem'. O que é isso senão uma recusa em envelhecer? E o que é retardar o envelhecimento senão postergar a morte? É disso que estamos falando quando calçamos um tênis". Foi com esse espírito que Sérgio dobrou a distância e começou a correr maratonas. Mais do que fazer os 42km, queria conquistar o graal dos corredores: o índice para a Maratona de Boston.
Caminho até Boston
A prova de Boston, cuja edição deste ano será na próxima segunda-feira, dia 16, é a maratona mais tradicional do planeta. Acontece desde 1897 e não deixou de ser realizada nem quando o mundo se digladiava na Segunda Guerra. Conforme foi ficando famosa, a organização passou a exigir índice de performance dos atletas como uma maneira de evitar que o evento crescesse além da conta. O efeito disso é que ela se transformou em uma obsessão para muitos maratonistas amadores do globo. É muito difícil conseguir se credenciar para correr o trajeto que parte de Hopkinton e passa por algumas pequenas cidades antes de chegar de fato a Boston. Para se ter uma ideia, hoje um homem que tenha entre 18 e 34 anos – categoria na qual ainda me encaixo – teria que fazer alguma outra maratona a aproximadamente 3h03m30s para se habilitar à competição (uma mulher da mesma faixa etária teria que alcançar algo em torno de 3h31m30s).
"Se a corrida de rua é uma escola, se a maratona com seus desumanos 42km é a universidade, pode se dizer que a Maratona de Boston é uma espécie de pós-doutorado. Quase uma Harvard esportiva. A metáfora faz mais sentido quando se mergulha na história do lugar. No início do século 18, o milionário Edward Hopkins deixou uma enorme soma para a Universidade de Harvard. Os curadores não tiveram dúvida: compraram uma gleba de terra nas redondezas de Boston que, anos depois, viraria o município de Hopkinton, justamente a largada atual da maratona. A 'Harvard das maratonas'", escreve Sérgio.
O livro traz o caminho percorrido pelo autor para conseguir o índice e realizar sua primeira Maratona de Boston. Trata-se de uma obra que flui bem, gostosa de ler, que deverá interessar e agradar principalmente a outros corredores amadores. De negativo, uma excessiva exposição da assessoria esportiva que orienta Sérgio – em alguns momentos até parece que o autor está fazendo "merchan" da empresa. De positivo, a própria história central, com direito à decepção de atingir o índice requisitado, mas vê-lo se tornar insuficiente após uma mudança nas regras da competição, o que obrigou o autor a se desdobrar para alcançar uma nova marca.
Sérgio também acerta ao intercalar a própria trajetória com outras histórias relacionadas àquela maratona, como o atentado ocorrido na reta de chegada em 2013, o incansável John Kelley, que correu a prova 61 vezes, e a ousadia de Kathrine Switzer, que pensavam ter sido a primeira mulher a correr a prova, isso em 1967. Em uma época de extremo machismo, as moças eram vetadas da competição, acreditavam que aquele tipo de extenuação física não era para elas. Tanto é que quando o diretor da prova foi alertado de que havia uma mulher correndo em Boston, deu vexame:
"Na altura do quilômetro 3, o ônibus de imprensa veio buzinando atrás. Além de repórteres e fotógrafos, o veículo levava o diretor da prova, Jock Semple. Alguém no caminhão percebeu a corredora e disse, quase em um tom de deboche provocativo: 'Jock, tem uma mulher em sua prova'. Na hora, ele ordenou que o ônibus parasse. Mesmo vestindo calça e gravata, desceu e saiu em disparada na direção da 'intrusa'. Kathrine ouviu apenas o som de sapatos de couro no asfalto antes de ser agarrada pelo diretor de prova. 'Me dê seu número e saia da minha prova', gritou o homem, já tentando arrancar o número. O forte Tom Miller respondeu com um encontrão em Semple que foi suficiente para livrar a corredora. O treinador Briggs gritou: 'Vá e corra com tudo'". No ano anterior, porém, uma outra mulher já tinha feito a Maratona de Boston, ainda que sem registro oficial: Bobbi Gibb, uma lenda do esporte e posteriormente reconhecida como tri campeã da prova.
Me cercar de referências sobre corrida sempre ajudou a não desanimar nos treinos, já disse isso aqui outras vezes, e o livro do Sérgio veio bem a calhar. No momento me preparo para a segunda meia maratona, que acontecerá em maio. Há dois dias fiz um longão num tempo ótimo – para os meus padrões – e estou otimista de que baterei a meta da vez. E qual é essa meta? Melhor deixar pra lá. Mesmo se cumpri-la, ainda estarei bem longe do honroso "7X1" que o colega diz ter tomado na meia do Rio.
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