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Bilionários mimados, luxúria e… colo de mãe: a trajetória da Dama do Pôquer

Rodrigo Casarin

01/03/2018 10h24

"Não sei por quanto tempo fiquei lá sentada, encostada na porta. Eu me sentia fraca e paralisada. Quando enfim me levantei com as pernas trêmulas e fui para o banheiro, meu reflexo no espelho estava horrendo. Olhos inchados e pretos, o lábio cortado e ensanguentado, e sangue salpicando todo o rosto, o pescoço e o peito. Minhas roupas estavam cobertas de sangue. Era como olhar para a imagem de outra pessoa. Entrei no chuveiro e fiquei parada debaixo da água, o calor chicoteando minha pele machucada e cortada. Não dei a mínima. Ajoelhei-me e solucei debaixo da água, chorando pelas coisas que perdera, pela solidão, por todas as coisas que eu tinha esperança de ser. Acima de tudo, chorei porque eu sabia que não desistiria – nem mesmo agora, nem mesmo depois daquilo".

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Molly Bloom tinha tudo para ser uma das maiores esquiadoras dos Estados Unidos. Na adolescência chegou a figurar entre as três principais atletas da categoria, mas, por conta de dores causadas por um problema na coluna ainda na infância, abandonou o esporte. Deixou Loveland, no Colorado, e foi para Los Angeles tentar uma nova vida. Igual tantas outras garotas, começou trabalhando como garçonete. Diferente de tantas outras garotas, logo esbarrou com alguém que lhe transformaria.

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Empresário bem-sucedido, Reardon Green estava abrindo um restaurante na cidade e precisava de alguém que fosse seu braço direito no negócio. Esse alguém acabou sendo justamente Molly, que virou secretária particular de Reardon. Foi com ele que a jovem aprendeu – na base da porrada verbal e do assédio moral – como funciona o mundo do capitalismo extremo, habitado por machões mimados que querem tudo para ontem, que não aceitam recusas, adoram a frase "você sabe com quem está falando?", aparentemente nunca dormem e só respeitam aqueles que podem lhe trazer algum lucro. Foi Reardon também que colocou Molly no universo do pôquer.

Dama do Pôquer

Ainda como auxiliar do empresário, Molly começou a organizar jogatinas de multimilionários. Descobriu do que gostavam, aprendeu a agradá-los e montou uma espécie de clube secreto do pôquer, onde todos os verdadeiramente endinheirados queriam estar para ostentar e torrar fortunas. Cabia a ela dizer quem poderia ou não sentar à mesa. Ganhando gorjetas polpudas, cresceu no negócio e passou a fazer parte do mundo que lhe conquistou, um mundo feito de marcas de luxo, viagens em jatinhos, jantares em restaurantes caríssimos e festas exclusivas lotadas de celebridades, regadas a champanhe de mil dólares – e aditivos como cocaína.

Os jogos de apostas clandestinas organizados por Molly foram além de Los Angeles. Chegaram a Las Vegas e, depois, Nova York. Preocupada em sempre mesclar empresários milionários – ou bilionários – com estrelas, em suas mesas sentavam jogadores de basebol, basquete, rappers e gente do cinema como Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire e Ben Affleck.

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Para compor o ambiente sempre repleto de luxo e requinte, um time de coelhinhas da Playboy – sim, um toque escancarado de luxúria fazia parte do pacote que oferecia. Dessa forma, via homens arriscando e quase sempre perdendo 100 mil, 300 mil, 500 mil, 1 milhão e até 5 milhões de dólares em algumas horas de jogo. Conforme expandia o negócio, as cifras, claro, aumentavam. Tendo as gorjetas e comissões como sua fonte de lucro, em uma só noite chegou a arrecadar mais de 200 mil dólares. Molly Bloom deixara de ser esquiadora para se transformar na Dama do Pôquer nos Estados Unidos.

"Eu me vestia como uma mulher e agia como uma mulher, mas era capaz de falar fluentemente a língua dos homens. Eles ficavam intrigados com meu jogo, meu estilo de vida e a multidão de garotas bonitas que eu empregava. Agora eu dirigia um Bentley, dividia os custos do aluguel de jatinhos particulares, tinha mesa cativa nas casas noturnas. Contratei uma assistente pessoal para cuidar dos meus afazeres, tinha um chef, e todas as tarefas mundanas haviam sido extirpadas do meu cotidiano. Excluí também todas as pessoas mais próximas de mim. Eu nunca ligava para meus antigos amigos, que, por sua vez, também tinham parado de me telefonar. Meus familiares sabiam que eu comandava jogos de pôquer e que eu ganhava (e gastava) muito dinheiro, mas, na medida do possível, tentava evitar conversas sobre o tema com eles. Minha família desaprovava a carreira que eu escolhera. Decidi que não precisava da aprovação deles. Algumas garotas têm coraçõezinhos e estrelinhas nos olhos. Eu tinha cifrões".

"A Grande Jogada"

Bloom conta a sua história em "A Grande Jogada", publicada por aqui pela Intrínseca, autobiografia ágil e interessante, que mostra como se divertem pessoas que parecem viver apenas para o dinheiro. A trajetória da Dama do Pôquer também foi levada para o cinema pelo diretor Aaron Sorkin, em filme que estreou há pouco no Brasil. É do livro, onde Molly preserva o nome verdadeiro de muitos personagens (Reardo, por exemplo, é um pseudônimo), que retiro tanto a citação imediatamente acima quanto a que abre este texto, na qual a empreendedora relembra de quando foi espancada e assaltada dentro do próprio apartamento onde vivia em Nova York.

A vida abastada de Bloom não durou mais do que alguns anos. Apostando num negócio que ficava na zona cinzenta da lei – por não ser regulamentada, sua atividade não era ilegal, mas tampouco tinha amparo jurídico -, acabou se envolvendo com aqueles que assumidamente vivem na ilegalidade. O espancamento foi uma espécie de aviso sobre o que poderia lhe acontecer se não cedesse às exigências de homens que tentavam lhe extorquir. Não demorou também para que o FBI estivesse no seu encalço. Foi presa em 2013 acusada de envolvimento em um esquema de apostas do crime organizado – em 2014 sua pena foi convertida para um ano em liberdade condicional, duzentas horas de serviço comunitário e multa de mil dólares.

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Na autobiografia, indicando que incorporou o discurso caricato dos multimilionários, diz não se arrepender do que fez e que tudo lhe serviu de lição para o que ainda fará da vida. No entanto, no pior momento da sua carreira, mostra que mesmo a mais poderosa e autoconfiante das pessoas tem seus momentos de fragilidade. Vendo que tudo o que ergueu estava prestes a ruir, retorna ao Colorado, à casa dos pais, ao colo de sua mãe:

"E então tive uma crise de choro. Minha mãe me amparou, e eu não conseguia parar de chorar. Depois de contar a ela o que tinha acontecido, eu me enfiei em sua cama e ela ficou junto comigo, afagando minha cabeça até eu adormecer, num sono sem sonhos. Acordei quando o sol estava se pondo. Aninhada lá no meio da floresta, eu me sentia a mundos de distância de minha vida no pôquer".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.