Publicar o livro que Renato Russo escreveu aos 15 anos é ofensa ao artista
"Um dos meus planos é, quando eu estiver com uns 40, 50 anos, escrever ficção. Eu tenho a minha vida toda planejada […]. Meu plano é ser maior do que o Shakespeare… Ah, é bacana, né? Você vai querer ser o quê? O Zezinho que escreve lá uns romancezinhos? Ora bolas, o plano da Legião era ser que nem os Beatles… É sempre bom ter um sonho".
Foi o que Renato Russo disse em 1986, em entrevista à jornalista Bia Abramo, publicada na edição de abril daquele ano da revista Bizz (veja aqui uma lista com outras referências literárias do letrista da Legião). Na ocasião, o então vocalista da Legião Urbana também falou sobre uma banda que inventara na adolescência:
"Desde pequeno eu tinha minhas bandas imaginárias. Ainda mais porque eu sou fã do Fernando Pessoa e, quando descobri que ele tinha os heterônimos, eu inventei logo os meus. Eu tinha uma banda chamada Forty Second Street Band, que era até com o Jeff Beck e com o Mick Taylor, eu era um cara chamado Eric Russel. Eu achava esse nome a coisa mais linda do mundo e aí eu era louro e lindo e cheio de gatinhas…".
Agora, mais de 30 anos depois da entrevista e 20 anos após a morte de cantor, a Companhia das Letras lança "The 42nd ST. Band". A obra reúne o material relacionado à banda imaginária que Renato escreveu em cadernos e folhas avulsas entre seus quinze e dezesseis anos, enquanto se recuperava de problemas de saúde que o deixaram por quase dois anos sem conseguir andar direito. Organizado por Tarso de Melo, apesar de o título ser apresentado como um "projeto 'inacabado'" e um "romance fragmentário", é, na verdade, muito menos que isso.
"The 42nd ST. Band" não passa de um mero ajuntamento de escritos quase sempre desconexos e muitas vezes repetitivos. Sim, neles podemos observar quanto Renato já entendia do funcionamento do universo musical e do entretenimento e também podemos imaginar que, quem sabe, dali se pudesse tirar uma narrativa que se transformasse em um romance. Mas o que temos são apenas anotações, sinopses, descrições de personagens, listas, discografias, reportagens e resenhas inventadas, fragmentos de diários… Enfim, rascunhos do que poderia vir a ser a biografia de uma banda de rock fictícia, mas não é.
Quem quiser fazer uma leitura premonitória, no entanto, consegue encontrar conexões entre o que Renato imaginou para Eric Russel e passagens da Legião – como a luta para ter liberdade criativa na gravação do primeiro disco – e gostos que refletiam o do próprio artista (paixão pelos Beach Boys, por exemplo).
Dentre os raros aspectos positivos que merecem destaque na massaroca de ideias reunias em "The 42nd ST. Band", legal ver que a banda imaginária pretendia "transformar em música o monólogo de duas horas e meia de fluxo de consciência da Molly Bloom, escrito pelo [James] Joyce". Interessante também a peça "A Quest for Hades – Balada em um Ato (1982)", assinada por Eric Russel. Será que alguém irá encená-la uma hora dessas?
Quem sabe. Nos últimos anos, novidades relacionadas a Renato já vinham surgindo e esse processo irá se intensificar nos próximos meses, quando devem estrear duas peças teatrais, um filme e uma exposição, além do lançamento de um CD com releituras de músicas do artista. Espero, sinceramente, que tudo seja melhor do que os dois livros publicados com o nome de Renato; se "Só Por Hoje e Para Sempre", lançado no ano passado, já era bastante cafona, "The 42nd ST. Band" é ainda menos relevante artisticamente e em nada agrega à obra do artista.
Nas dezenas de entrevistas reunidas no livro "Conversações com Renato Russo", sempre que perguntado sobre literatura ou se pretendia escrever um livro – temas bem recorrentes –, o artista nunca diz que gostaria de mexer naquilo que escreveu na adolescência e, muito menos, publicar o material. Pelo contrário, afirmou na conversa já citada que só escreveria quando tivesse uma boa carga de vida. "Eu acredito que você tem que passar pelo tempo para poder escrever como o Drummond, o García Márquez, o Thomas Mann…".
Se ele tinha esse pensamento, chega a ser um desrespeito, uma ofensa, publicar uma brincadeira que ele colocava no papel enquanto estava forçosamente enfurnado em seu quarto. O sonho do legionário era ser maior que Shakespeare. Não teve tempo para tentar tal (improvável) feito, e "The 42nd ST. Band" não o coloca nem no mesmo nível de um "Zezinho que escreve lá uns romancezinhos". Deveriam ter poupado Renato Russo disso.
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