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Apesar de cafona, diário de Renato Russo é um valioso registro do artista

Rodrigo Casarin

28/07/2015 14h25

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Recentemente lançado pela Companhia das Letras, "Só Por Hoje e Para Sempre" é a edição do diário escrito por Renato Russo enquanto esteve internado na clínica de reabilitação Vila Serena, entre abril e maio de 1993, para tentar resolver seus problemas com as drogas. O que chega ao público é uma obra ambígua, que traz um importante relato pessoal do líder da Legião Urbana marcado por diversos momentos de extremo cafonismo.

A estética de "Só Por Hoje e Para Sempre" já começa duvidosa pelo próprio título e pela florida capa da obra, que, no entanto, refletem muito bem trechos como "Bom dia! [desenho de coraçãozinho] Gostei muito do seu retorno. Vamos conversar mais? Bom tempo, só por hoje, seu amigo Renato".

Em seus registros, o artista não se priva de utilizar frases extremamente batidas como "Sempre em frente que atrás vem gente" e também se mostra fortemente convencido que o Programa dos Doze Passos, criado pelo Alcoólicos Anônimos e apoiado em um tal de "Poder Superior", era o melhor para si.

"Para mim, o Poder Superior não se explica por palavras. Sua existência é percebida não pelo intelecto, mas sim pelo coração. É como o vento, não se vê o vento, mas vemos as árvores em movimento, ouvimos o som e sentimos o vento no corpo. Só que o vento se explica, e o Poder Superior não. É importante para mim porque minha vida agora depende disso", escreve Renato.

No próprio texto de apresentação do livro, Giuliano Manfredini, filho do artista, já revela o caráter de autoajuda do volume: "Estou convicto de que servirá de inspiração para os que buscam forças para vencer crises pessoas das mais diversas origens e sair fortalecidos desse processo".

Contudo, não critico o ex-líder da Legião pelos seus registros. Diário é algo particular, que se faz desarmado, sem se preocupar com sua publicação. E quando os sentimentos e as emoções são expostas sem qualquer tipo de apuro estético, invariavelmente o que temos é algo cafona. Renato foi um grande artista, reconhecido principalmente por conta do que escreveu em suas letras (que admiro sobremaneira, diga-se), e se fosse mesmo transformar o diário em livro faria uma gigantesca edição de tudo o que ali está, sem dúvidas.

Valor histórico

Se "Só Por Hoje e Para Sempre" em nada acrescenta à obra de Renato, tampouco a prejudica justamente por ser uma publicação sem grandes pretensões. Apesar dos momentos constrangedores, o volume acaba sendo útil principalmente para fãs, pesquisadores e historiadores ao revelar bastante do Renato Manfredini que muitas vezes tentava se esconder por trás da persona Renato Russo. Era alguém que se apoiava na autopiedade para se mimar e destruir, preocupado com a assertividade e extremamente carente – estava sempre buscando por um amor, por um amigo, por qualquer tipo de companhia. Não que isso seja novo, mas é diferente perceber essas características por meio de registros do próprio artista.

Sobre sua sexualidade lembra de quando flertou com o sadomasoquismo ("De bicha proustiana passei a bicha pasoliniana (à la Salò ou Os 120 dias de Sodoma)" e das épocas de grande obsessão ("Minha compulsão sexual voltou (por vezes, eram cinco meninos por noite, toda noite)").

Com relação às drogas, lamenta o quanto gastou seu dinheiro com elas, o que lhe impediu de criar reservas significativas, e afirma que, caso viajasse para a Europa, lugar que até então não conhecia, "certamente morreria de overdose de heroína", sua substância favorita além do álcool.

Ao falar da Legião, revela admiração por Dado Vila Lobos ("Além de grande generosidade de espírito, inteligência, coragem e sensibilidade, ele é um raro exemplo de beleza física aliada a sex appeal; belo, sensual e de beleza marcante"), com quem tinha fantasias sexuais, e problemas com Marcelo Bonfá ("Por eu não ser assertivo, Bonfá se achava indispensável e sempre que possível dificultava as coisas, para se valorizar às custas do grupo. Eu sempre cedia, mas também porque não suportava rejeição e queria ser amado").

Perfeccionista e exigente

Voltando ao texto de abertura de Giuliano, o filho de Renato lembra de uma passagem para justificar a publicação do diário: "Um dia, intrigado, perguntei: 'Pai, por que você escreve tanto?'. 'Porque nos próximos cinquenta anos, Giuliano, as pessoas poderão saber o que eu sinto e penso hoje', respondeu ele".

No entanto, ao final de seu diário, Renato enfatiza: "Sou ainda perfeccionista e exigente (principalmente no campo estético)". E um autor perfeccionista e exigente com a estética não aprovaria a publicação de tais registros, em que pese seu valor histórico.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.