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Calidoscópio de atrocidades: mundo cão de Edyr Augusto é mosaico do Brasil

Rodrigo Casarin

06/03/2020 10h30

Edyr Augusto em foto de Luiz Braga.

"Gil, tu sabes como és importante pra mim e creio que eu também sou importante pra ti. Me dá a Paulinha, vai. Gil ouve tudo de cabeça baixa e nada responde. Deixa que a consciência de Marollo, desesperada com seu silêncio, aumente as ofertas possíveis. Tinha virado trabalho. Ele vai ficar com Paula? Inevitável. Tem seu ganha-pão. Gosta de Paula? Gosta. Pode ser apenas uma distração passageira. Ele tem os filhos, acaba voltando. Doutor, eu também ia ganhar muito dinheiro com ela. Ah, sim, entendi. Vamos ver. Qual tal duzentos mil na mão? Doutor, o senhor sabe que eu ganharia muito mais. Que o senhor, agora, vai ganhar. Então, trezentos mil? Fraco, doutor. Me dê quinhentos mil. Porra, meu filho, tu queres me afubitar? Doutor, mas olha o que o senhor vai ganhar, doutor… Cheirando a leite, acabei de deflorar… Não diga mais nada, Gil. Já tenho ciúmes".

O trecho faz parte de "Belhell", romance que Edyr Augusto acaba de lançar pela Boitempo, e condensa bem as características desse escritor paraense que já merecia ser muito mais festejado do que é. Raros autores conseguem imprimir um ritmo tão veloz à prosa quanto Edyr. Suas frases curtas, muitas vezes com apenas três ou quatro palavras, arquitetam longos parágrafos em que as vozes de personagens e do narrador se alternam sem aviso prévio.

O recurso pode se tornar uma armadilha para leitores menos experientes. O turbilhão de diálogos, resmungos e informações chega a causar vertigem em alguns momentos. Numa época em que passamos o dia com o celular na mão conversando com dezenas ou centenas de pessoas por meio de frases breves em aplicativos, numa época em que tudo parece acontecer em pouquíssimos minutos, poucos artistas conseguem apresentar uma linguagem que represente tão bem o nosso tempo.

Desde que estreou na literatura (em 1998 com "Os Éguas") é de Belém, a cidade onde vive, que Edyr tira a matéria-prima para sua ficção – a perfeita conjugação da segunda pessoa do singular, motivo de orgulho para muitos paraenses, é outra marca de seu texto. Em "Belhell", como o título evidencia, não é diferente. Somos novamente levados ao submundo da cidade, onde encontramos grandes figurões: policiais corruptos, milicianos, ricaços que podem torrar milhões numa noite, um médico que só se excita ao garrotear e estrangular moradores de rua, políticos importantes, o governador…. São caminhos que se cruzam num calidoscópio de sacanagens, contravenções e crimes bárbaros, apresentando uma inescrupulosa realidade em que a lei do mais forte é a única existente.

É simbólico que boa parte da história se passe (ou seja influenciada pelo que se passa) num cassino clandestino de altíssimo luxo, onde autoridades e "doutores" se encontram para beber uísque, cheirar cocaína e torrar muita grana. Apostam o dinheiro sujo que ganham, mas, numa partida em que o final é sempre o mesmo, acabam também por jogar com a própria vida. E com a vida de todos que cruzam seus caminhos: a garota deslumbrante que encontra no pôquer uma via para enriquecer, o jovem que aos poucos se vê no centro do universo criminoso, a anã que toca numa boa um prostíbulo até milicianos baterem à porta….

Não pensem, porém, que estamos diante de um livro maniqueísta, em que os poderosos são apresentados como malvados e os mais pobres como vítimas de um sistema corrompido. Não existe isso na literatura de Edyr Augusto. De suas páginas emergem tipos humanos demais, com virtudes, com podridões e jeitinhos para se sair bem na vida, precisando lidar – e, ao mesmo tempo, ajudando a formar – o pandemônio que é nossa realidade. Nesse sentido, poucos autores conseguem criar representações tão boas do que é o Brasil.

Alguns colegas me perguntaram se "Belhell" é melhor do que "Pssica", livro anterior que fez com que Edyr ganhasse um merecido e qualificado, porém ainda pequeno, fã clube. Não sei. Por ter um ritmo mais preciso e uma história mais coesa (e por apresentar uma realidade amazônica quase inimaginável para quem vive em São Paulo), talvez prefira "Pssica". Em todo caso, meu livro favorito do autor permanece sendo "Moscow", de 2001. No final das contas, o que importa é que "Belhell" é mais um romance que merece e precisa ser lido; é mais uma peça importante no caminho que Edyr trilha como um dos melhores escritores vivos do país.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.