Horóscopo até para os heterônimos: o lado astrólogo de Fernando Pessoa
Numa das páginas iniciais de "Vida e Obras de Alberto Caeiro" está a imagem que me chamou a atenção: um horóscopo do heterônimo feito pelo próprio Fernando Pessoa. Que o poeta português autor de "Livro do Desassossego" e criador ainda de Ricardo Reis e Álvaro de Campos, outros personagens que assinaram parte de sua obra, levou uma vida peculiar e se transformou em um dos nomes mais importante da literatura em nossa língua eu, evidentemente, sabia. O que não sabia é que Pessoa também foi metido a astrólogo.
E parece que dos bons, ainda que um pouco desatento. Projetando a própria vida de acordo com os astros, chegou a prever com exatidão o ano do bater de botas – 1935 –, mas equivocou-se no dia por conta de um erro de cálculo. Analisando Portugal, escreveu que "uma nação é uma alma". Buscando antever acontecimentos, assinou durante um bom tempo o horóscopo da revista "Orpheu". Indo ao encontro de seus jogos criativos, constituiu até uma personalidade para dar pitacos sobre temas esotéricos: Raphael Baldaya. No espólio deixado por Pessoa é possível encontrar dezenas de horóscopos e outros estudos e esboços astrológicos, alguns deles de escritores já falecidos, feitos para que o poeta tentasse matar algumas de suas curiosidades.
Pessoa também "aplicou-se a estabelecer os horóscopos dos seus heterônimos: era uma outra maneira de lhes escrever a biografia, contá-los através das disposições dos astros que para eles previu", diz Teresa Rita Lopes, uma das maiores especialistas no poeta. "Heterônimos foram só três, Pessoa fazia sempre questão de advertir: Alberto
Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos", frisa a pesquisadora que assina a coleção de Fernando Pessoa que vem sendo lançada pela Global e da qual "Vida e Obras de Alberto Caeiro" é parte.
Como fazia com tudo o que realmente lhe interessava, Pessoa foi a fundo nos estudos da astrologia. Leu muito sobre o assunto e há astrólogos que asseguram que o poeta realmente possuía um vasto e profundo conhecimento nessa área, chegando até mesmo a propor uma nova teoria para o campo. Para Teresa, esse interesse vinha de longe. Sancho Pessoa, tetravô do poeta, tinha sido astrólogo, conta. "Era judeu, oficiava numa sinagoga, e por pouco não ardeu na fogueira da Inquisição, que se limitou a confiscar-lhe os bens – que era o que mais interessava à santa instituição!". Junto disso, o interesse por assuntos religiosos contribuiu para que o poeta avançasse no estudo dos astros.
"É claro que o seu interesse pela astrologia procedia do 'espírito religioso' que Pessoa sempre assumiu ser, embora desligado de todas as 'igrejas organizadas', como escreveu. Foi assim que se apresentou, pouco antes de morrer, como 'cristão gnóstico', e, num poema escrito no ano da morte, um tríptico intitulado 'Praça da Figueira', como 'templário'", conta a pesquisadora.
Interessado na história de grupos como a Ordem dos Templários e a Fraternidade Rosa Cruz, as pesquisas de Pessoa sobre as diversas seitas que de alguma forma se relacionavam a religiões também ajudou a compor sua visão astrológica. "A sua crença nos astros tinha que ver com a convicção de que, além de deuses e Deus, imperava o Destino. Para ele o que existia era uma cadeia de deuses, já que cada deus era filho de outro, não haveria um Deus apenas. E os astros seriam os aliados do Destino para determinar a vida de cada ser ou de cada acontecimento…", completa Teresa.
"Um drama em gente"
Como disse, "Vida e Obras de Alberto Caeiro" faz parte de uma coleção de Fernando Pessoa que a Global vem publicando desde 2015. O volume mais recente é "Vida e Obras do Engenheiro Álvaro de Campos", mas já há também nas livrarias "Vida e Obra de Ricardo Reis" e "Livro(s) do Desassossego". Os volumes são frutos do trabalho que Teresa desenvolve desde a década de 1970 com a obra de Pessoa, motivo de sua tese de doutorado na Sorbonne.
"Já tinha a percepção de como era pouco e, muita vezes, adulterado o que dele estava publicado. Apresentei na minha nova visão sobre a sua obra, mas continuei as minhas pesquisas no espólio, que conheci na casa da irmã de Pessoa. Comecei então a tentar restituir os textos pessoanos à sua verdade, que é o que estou fazendo agora: corrigir-lhes os erros de leitura, dar a conhecer os inéditos e, importantíssimo, reconstituir a longa ficção que representam, que Pessoa foi escrevendo, em poesia e prosa, ao longo da vida. Ele definiu a sua obra como 'um drama em gente', mas os seus exegetas sempre negligenciaram essa dimensão dramática para que Pessoa chama a atenção, e que me tenho empenhado em fazer valer", diz a pesquisadora.
Dentre as particularidades da coleção há demonstrações do processo criativo de Pessoa, como manuscritos das primeiras versões de certos poemas, e a escolha por manter em branco as palavras ilegíveis dos textos do autor, cuja letra não era exatamente um primor (em outras ocasiões, organizadores optaram por sugerir palavras baseadas em suposições). "Vida a Obras de Álvaro de Campos", por exemplo, é um título que o próprio poeta havia previsto para o livro relativo ao seu heterônimo (que contaria até com fotografias e, claro, o horóscopo de Campos), mas que nunca havia sido usado antes da coleção organizada por Teresa.
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