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Vivendo com ex-sem-teto, Soninha se diz à vontade entre os “sujos e feios”

Rodrigo Casarin

14/08/2018 09h27

"Sempre fiquei à vontade entre os 'sujos e feios'. Acho que consigo enxergar antes a riqueza das pessoas que vivem na rua; o coração, a inteligência. A graça!".

"Eu me apaixonei por um determinado homem, com nome, sobrenome, história, personalidade. Era o que eu vivia dizendo para quem achava que eu estava misturando a vontade de 'consertar o mundo' com outros sentimentos".

"Fui percebendo que estava ficando cada vez mais interessada em estar com ele. Aquela hora em que você confessa pra si mesmo que conta os dias, os minutos, para encontrar a pessoa. Percebi essa ansiedade, essa expectativa, e ficava frustrada quando não o encontrávamos na praça".

"Eu abraçava todo mundo, mas o abraço nele não era igual. Comecei a me imaginar abraçada com ele debaixo do cobertor até dormir. Eu faria isso".

As palavras são de Soninha Francine, vereadora paulistana que em 2014 se apaixonou por Paulo Sergio, então morador de rua, onde era conhecido como "Dig Dig". A história romântica que causou surpresa e certo espanto em muita gente agora está contada em detalhes em "Dizendo a que Veio – Uma Vida Contra o Preconceito" (Tordesilhas), livro no qual a jornalista que seguiu carreira na política retrata algumas facetas de sua vida.

A relação com o atual parceiro começou enquanto Soninha fazia visitas à Praça Marechal Deodoro, no centro de São Paulo, para conversar e dar uma força às pessoas que ali moravam. Dig Dig era o mais arredio e maltrapilho do grupo do qual se aproximava, o que chamou a atenção da vereadora. "Era o mais sujo da roda, rosto inchado, roupas imundas, dentes poucos e ruins, que explicavam o apelido de 'vovô'".

Começou, então, um processo de aproximação e conquista da confiança. Conforme ganha intimidade, notava que estava diante de alguém especial aos seus olhos, um "maloqueiro" que cantarolava Marvin Gaye, conversava sobre "Os Intocáveis" e amava "Losing My Religion", do REM. O primeiro beijo, enfim, aconteceu sob o Minhocão. "Ele me deu um beijo inacreditavelmente bom, eu não fugi. Não imaginei que aquela pessoa, aquele homem, pudesse beijar tão bem. Eu pensava nas pessoas no ônibus e no ponto, rezava para ninguém me reconhecer".

Segundo Soninha, os ensinamentos do budismo (um dos poucos elementos a dar coesão à obra) foram fundamentais para que ela se comprometesse a cuidar mais dos outros do que de si mesma – para ficar em palavras por ela utilizadas na narrativa -, provavelmente um norte essencial para que persistisse no relacionamento. Quando levou Dig Dig para casa, enfrentou a resistência de uma das filhas e precisou aturar a mãe lhe sugerindo que procurasse um psiquiatra.

Não bastasse, o parceiro era alcoólatra e o abuso da droga levava a sérios conflitos, ameaças e até casos que terminaram na polícia. "Uma pessoa que mora na rua não é um poste, não nasceu na rua. Se fosse um engenheiro alcoólatra, o problema com o namorado da mãe ou da filha seria o mesmo?", questiona a autora. Ao contornar os problemas com o álcool que o antigo sem-teto enterra sua versão Dig Dig para reassumir de vez o próprio nome: Paulo Sergio.

Como disse, contudo, o livro traz outros lados da vereadora. Enquanto jornalista, lembra dos tempos de MTV, de ESPN Brasil – e seus atritos com José Trajano – e de toda a polêmica em que se viu envolvida quando assumiu que consumia eventualmente maconha. Já como política, revela certos bastidores da sua rápida passagem pela Secretaria de Assistência Social de São Paulo no mandato de João Dória – que a demitiu com direito a um vídeo constrangedor postado na internet – e conta como se aproximou de José Serra, alguém que não suportava em seus tempos de PT, mas que aos poucos se transformou em seu amigo e, aparentemente, pessoa que mais admira, defende e enaltece no meio político.

A obra ainda traz Soninha refletindo sobre a esquerda e sua relação com esse espectro político e lembranças da sua própria formação, com destaque para quando, ainda na escola, foi proibida por freiras de jogar basquete porque estava grávida da primeira filha. "Dizendo a que Veio" é um grande livro? Não, longe disso, mas tem seus momentos interessantes.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.