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Igiaba: Música brasileira é patrimônio da humanidade; Caetano, uma religião

Rodrigo Casarin

27/07/2018 09h45

"Para mim, Caetano é uma religião".

É o que Igiaba Scego, italiana de origem somali, escreve em "Caminhando Contra o Vento" (Nós/ Buzz), ensaio no qual repassa parte da biografia de Caetano Veloso e revela como se apaixonou pelo artista. Uma das convidadas da Flip deste ano, Igiaba alia simpatia com certa intimidade e real interesse pela cultura brasileira, o que a torna uma forte candidata a repetir o fenômeno que foi Valter Hugo Mãe na edição de 2011 da Festa, quando o lusitano, até então pouco conhecido por aqui, conquistou boa parte do público presente em Paraty.

Estive com Igiaba nessa quinta. Assim que nos encontramos, perguntei sobre Caetano enquanto religião. Ela disse que permanece fiel ao músico, mas fez questão de ressaltar que se trata de uma religião laica. "As canções me ajudaram em muitas experiências da vida. Quando estou triste, coloco Caetano – e às vezes choro mais. 'Tigresa' eu coloco sempre, acho linda. 'Cajuína' também".

Igiaba conheceu Caetano graças a autores brasileiros. Formada em literatura moderna, interessou-se pelo país ao se deparar com a obra de nomes como Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Jorge Amado e Mário de Andrade ("gostei muito de 'Macunaíma'"). Conforme descobria a cultura brasileira e de outros países do nosso canto do mundo, achava uma resposta para algo que sempre lhe incomodou: a sua origem. Sentindo-se tanto somali quanto italiana, foi vendo a nossa multiplicidade que entendeu que poderia muito bem ser as duas coisas ao mesmo tempo. "Quando passei a estudar a América Latina, entendi que o mundo se parecia comigo, que tudo era muito misturado".

Caetano, exílio e colonialismo

Publicado na Itália em 2010, Igiaba escreveu "Caminhando Contra o Vento" para apresentar Caetano aos seus conterrâneos e, consequentemente, para mostrar um Brasil que foge de reduções simplistas. "Há uma ideia muito estereotipada deste país, que não é somente carnaval. Os jovens italianos descobrem isso ao ouvir as músicas. A música brasileira é um patrimônio da humanidade". Dentre as muitas boas passagens, no livro a autora aponta que vê "Cajuína", por exemplo, como um milagre musical, uma canção que, como "Yesterday", dos Beatles, acende "a faísca do divino".

Mesmo conhecendo profundamente toda a obra de Caetano, Igiaba conta que segue se surpreendendo com o músico e descobrindo novas camadas em suas canções. "É como a cidade em que vivemos. Sempre descubro algo novo em Roma e o mesmo se passa com Caetano. Ele é inclusive uma chave para conhecer outros cantores. Descobri [Carlos] Gardel, por exemplo, por causa de um cover de Caetano", diz, para depois elencar uma lista de grandes artistas que descobriu graças ao seu ídolo: Tim Maia, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia…

Outro momento representativo de "Caminhando Contra o Vento" é quando Igiaba escreve: "Caetano Veloso foi o primeiro que me ensinou que lutar pelos próprios direitos e pelos direitos dos outros não é apenas possível como também necessário". Na sequência, debruça-se sobre o tempo em que o músico viveu como exilado em Londres para falar sobre a ditadura militar brasileira e mostrar aos italianos o que leva muita gente a deixar seu país natal e procurar por uma nova vida em outras terras.

"Há que pense que eles [Caetano e Gil] estavam bem em Londres, mas não estavam nada bem, estavam sofrendo, longe da família. Isso acontece pelo mundo. Agora está acontecendo com os africanos, mas os próprios europeus já passaram por isso também. O mar mediterrâneo tem se transformado num cemitério. Temos que acolher quem vem da África".

Questões relacionadas às imigrações e ao movimento colonialista da Itália na Somália – intenso entre o final do século 19 e parte significativa do século 20 – estão presentes em dois outros livros de Igiaba que estão chegando às livrarias brasileiras pela Nós: "Adua" e "Minha Casa É Onde Estou". Este parte da escritora buscando se situar entre a Roma em que reside e a Mogadíscio, capital somali, que tinha em sua cabeça graças a viagens feitas na infância – a cidade acabou sendo destruída pela guerra civil que perdura desde a década de 1990.

Já "Adua" é narrado por uma jovem que parte da Somália para a Itália na década de 1930 com o sonho de ser atriz, o que não acontece exatamente como vislumbrara. "'Adua' é o meu livro sobre o colonialismo. E a personagem perde essa luta que trava, não ganha nada. Mas conta a história. Para um imigrante é importante contar a própria história, ser protagonista".

Viajei a Paraty a convite da EDP Brasil.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.