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"Eu puxava o canhão": crônicas revelam uma Hilda Hilst extremamente pistola

Rodrigo Casarin

24/07/2018 10h16

"Em decorrência da fetidez que assola o país, só tenho vontade de escrever textos sórdidos, coléricos, cínicos, degradantes ou estufados de um humor cruel e até me permitiria sugerir ao caríssimo editor que bolasse uma maneira de a crônica ser fechada assim como certas revistas envelopam um pequeno mimo, uma tirinha de seda, um saquinho de perfume, e envelopariam minha crônica e colocariam sobre ela uma fitinha negra: 'censurado' ou 'só para cínicos', ou 'só para fazer sorrir os desesperados'. Ou quem sabe, à maneira de Hesse: 'só para raros'. Porque, convenhamos, há pulhas em demasia".

É muito interessante o volume de crônicas de Hilda Hilst que a Nova Fronteira acaba de lançar, aproveitando que a autora de livros como "A Obscena Senhora D" e "O Caderno Rosa de Lori Lamby" será a homenageada da Flip deste ano, que acontece nesta semana. "132 Crônicas: Cascos & Carícias e Outros Escritos" (Nova Fronteira) traz textos – 20 deles até então inéditos – escritos entre 1992 e 1995 para o jornal campineiro "Correio Popular". E, como é possível perceber no trecho acima, a autora andava um tanto pistola na época.

Passando por assuntos do cotidiano, mostrando indignação com a política do país e se revoltando com a calamidade social brasileira, as crônicas de Hilda registram uma realidade que soa muito parecida com o que vemos nos dias de hoje, mesmo que passadas mais de duas décadas. Alguns dos trechos que selecionei abaixo poderiam muito bem ter sido cunhados na semana passada ou neste último domingo. Veja só:

Comunistas?

"É inadmissível que até mesmo pessoas tidas como inteligentes, cultas, ainda rotulem de 'comunistas', de 'esquerda festiva' aqueles que ficam indignados diante da extrema miséria em que vivem quarenta e dois milhões de brasileiros! Isso me deixa colérica. Quer dizer que não é pra se indignar? É pra deixar que poucos enrabem muitos, que 'é assim mesmo a vida', uns nasceram para ser enrabados e outros para enrabar?"

Hilda na Casa do Sol.

Jeshua coligaria?

"É o seguinte, negada: tudo isso de partidelhos, grupelhos, coligações me soa a bandalheira. Já pensou Jeshua coligando com os vendilhões do Templo? Se Ele tivesse 'coligado', poderia ter usado o chicote para expulsá-los? Céus! O que há com as gentes? Por que não escolhem alguns raros, de 'notório saber', e elaboram um plano-modelo para o país? Qualquer idiota sabe que é preciso erradicar a miséria, dar chances do cara ter casa, comida, escola e poder tratar da própria saúde. Que homens poderiam fazê-lo? E de que forma? Se você já coligou com assassinos, ladrões, pulhas, tá fora".

Historinha sadô

"Não me conformo também com isso de um deus mandar seu filho para o planeta Terra a fim de ser crucificado. Pra nos salvar, me ensinaram. Mas nós não fomos salvos de nada! Continuamos os mesmos estúpidos paranoicos (é só ler a História) em direção à loucura, ao pânico, ao desespero. Como é que você pode entender alguém que te diz: 'Sim, meu amor, eu te amo, mas aguenta firme que vou te arrancar as unhinhas, aguenta firme que vou te furar os óinho, aguenta firme que vou te crucificar'? Até parece historinha sadô: 'Me bate, amor, me corta de gilete, me põe o armário em cima.' Se Deus fosse só um amante enciumado e eu o traísse com o chifrudo, até dá pra entender. O sexo é ligado a muitas fantasias sórdidas. Ou vocês só fazem aquele buraco no lençol? Alguém muito especial me dizia: tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão. Mas a luz lá de cima, o grande sol das almas me condenando ao sofrimento, me pentelhando para sempre a vida? Ah, não".

Homo maniacus

"Vários articulistas têm escrito, a sério, nos mais importantes jornais, a respeito da fome hedionda de grande parte da humanidade e da fartura resplandecente do restante. Os outros temas são o neonazismo, a violência, a crueldade. Pois bem, meus amigos, eu, a sério, sou bastante pessimista. Não creio que haja salvação para o homem. O 'Homo maniacus'. Quando penso que o conceito de muitos é o de 'Homo sapiens', começo a sorrir. Quando leio o que doutores, economistas políticos, professores escrevem com alguma esperança, tenho delicadas expansões de riso. Sim. Delicadas, porque sempre par delicatesse j'ai perdu ma vie. […] Alguns homens geniais sugeriram que o problema do homem é o de encontrar alguma substância química que imunize a barbárie. E digo simplesmente que é preciso devolver a alma ao homem".

Eu puxava o canhão

"Resolveram 'limpar' a cidade de São Paulo atirando ao lixo os colchões daqueles pobres coitados que 'moram' debaixo de pontes viadutos, dentro de buracos etc. Por que não desinfetam os próprios neurônios e buracos, todos esses dirigentezinhos do baralho, porque convenhamos, senhores, tirar o colchão de mendigos é coisa de bandido! Então você tá lá esbodegado paupérrimo desgraçado, hodido (que em espanhol quer dizer a mesma coisa), e vem um pulha e te tira o colchão. Ah, eu puxava o canhão! Eta sociedade porreta! Eta capitalismo bão! Cadê a fraternidade, gente?"

Romário

"Se eu escrevesse num outro jornal, um jornal fulero, e não neste querido Correio Popular, eu começaria assim esta minha crônica: alô, negada! Prazer não é só fornicar, não é só cachaça, bunda, carnaval. Prazer não é só futebol, churrasquinho, cerveja e arrotar. Prazer pode ser Conhecimento. Triste é o país cujo maior ídolo do momento responde ao jornalista (quando este lhe pergunta se ele gosta de ler): 'Não leio nada'. Foi essa a resposta de Romário. Triste é o país cujos habitantes são chamados lá fora de 'bundeiros' porque cultuam traseiros. Triste é o país que está sempre de quatro para o Primeiro Mundo e não se enxerga dobrado, saqueado, dando sempre o buraco. Triste é o país cujos líderes cagam solenemente para a Cultura, zero vírgula zero três por cento de seu orçamento nacional. Triste é o país cujas crianças famintas não podem nem sequer pensar em ir à escola, e, drogadas, tornam-se assassinas e são assassinadas. Triste é o país onde o povão aparece no vídeo, todo 'anarfa', 'nóis vai', 'nóis fica', a boca vazia, e no Congresso os líderes, títeres de suas próprias vaidades, se esmurram, boçaloides".

Política & negócios

"Gente!!! Se quiserem me chatear seriamente é só começar a falar de política & negócios. Há tamanha escroteria, tamanha torpeza no cerne desses dois assuntos (na verdade um só), que me vem logo à cabeça 'o verme no cerne', expressão de William James, mas com novas conotações aqui, na minha modesta crônica, o verme dentro daquela rombuda e reluzente goiaba naquele galho logo ali, você nhac, e lá está ele mole e branquicento, puff, politica & negócios. E também toda essa parvoíce de presidencialismo-parlamentarismo-monarquia, pretensos distintos rótulos para velhíssimas instituições, todas ela com suas respectivas curriolas, suas vaidades, suas eloquências vazias e outra coisa: não é uma forma específica de governo que nos há de salvar, mas toda uma ética, uma consciência coletiva visando o bem-estar do Homem. E uma consciência cósmica. E solidariedade".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.