Lembrar de Tiradentes é necessário quando um presidente ataca a liberdade
Rodrigo Casarin
21/04/2020 09h27
Ano passado, na categoria Biografia, Documentário e Reportagem, o prêmio Jabuti foi para Josélia Aguiar pelo trabalho feito em "Jorge Amado" (Todavia). Tivesse ido para um dos outros quatro finalistas, no entanto, também estaria em ótimas mãos. Falo de Lucas Figueiredo e seu "O Tiradentes", que busca reconstruir a história de vida do revolucionário cuja morte completa 228 anos hoje.
"Biografar Joaquim José da Silva Xavier é embrenhar-se numa fresta escura. De um lado, pela cavilação das fontes disponíveis; de outro, pela escassez de registros – basta dizer, de início, que é impraticável descrever os aspectos físicos de Tiradentes", escreve o jornalista no final do volume. Tateando por uma infinidade de documentos, Lucas sai dessa fresta escura com um rico material em mãos e oferece ao leitor uma ótima reconstituição histórica, com destaque para a maneira como o autor trabalha os cenários e os ânimos da época.
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Ler "O Tiradentes" é fazer uma viagem no tempo. É, de cara, deixar um pouco de lado esses dias tão complicados para se situar no Brasil do final do século 18, quando alguns rebeldes ousaram imaginar um país independente, livre da opressão da Coroa Portuguesa. Enquanto a produção de ouro diminuía nas minas gerais e a realeza entuchava impostos goela abaixo dos mineiros, os ares locais pareciam cada vez mais propensos à ruptura.
"A Coroa não estava interessada em fazer de Minas – ou do Brasil – um lugar decente para se viver. Portugal não tinha um projeto para a colônia; queria apenas lucrar o máximo possível da forma mais rápida e com o menor custo", lembra Lucas. Mesmo vivendo em um lugar onde a impressão de livros e a edição de jornais eram proibidos, intelectuais mineiros estavam por dentro do que acontecia na Europa e na América do Norte. O Iluminismo ganhava força, os Estados Unidos conseguiam sua independência após a Revolução Americana e, na França, o pescoço do rei começava a ser ameaçado pelas tramas que culminariam na Revolução Francesa.
A trajetória de Tiradentes ajudou a forjar o revolucionário tupiniquim. Numa época em que certos profissionais apostavam em tratamentos feitos com osso de coxa de sapo, dente de toupeira viva, gordura de rã ou pó de lagarto, foi um dentista competente, o que lhe abriu muitas portas. Atuando como mascate, também se aproximou de humildes e poderosos, além de conhecer a fundo as picadas de Minas e do Rio. Como militar, enfim, encontrou apoio para tramar contra o rei e sonhar com a liberdade.
Mas, não tem jeito, sempre que olhamos para a história do Brasil, notamos que o presente reflete muitos traços do nosso passado. Thomas Jefferson, um dos líderes da Revolução Americana, esteve à sombra dos revolucionários mineiros, já indicando uma dependência (ou, pior, subserviência) que viríamos a ter dos Estados Unidos. A Justiça, por sua vez, era assumidamente arbitrária. Leis estipulavam que os "homens bons", "bem reputados", os cidadãos de outrora, não deveriam ser importunados com processos ou prisões, mesmo que, por ventura, cometessem algum crime. Nesse ponto, dois séculos depois, estamos mais dissimulados, fingimos ter leis que se aplicam da mesma forma a qualquer brasileiro.
O final da história de Tiradentes todos conhecem. Apunhalado pelas costas, viu a revolução fracassar. Foi pintado como demente, bêbado, devasso…. Acusado de trair a sua majestade, passou anos preso. Alvo de um julgamento manipulado, terminou enforcado e esquartejado. Sobre seu cadáver, gente graúda enchia a boca para falar dos "benefícios da colonização" e as "delícias da subserviência".
"No alto do patíbulo, enquanto o cadáver de Tiradentes pendulava preso à corda, o frei Penaforte recitou o versículo 20 do capítulo 10 de Eclesiastes: 'Não digas mal do rei, nem mesmo em pensamento; mesmo sozinho dentro do teu quarto, não digas mal do poderoso. Porque um passarinho pode ouvir e depois repetir tuas palavras'. Terminada a leitura, em tom de repreensão, o frade apontou a causa de todo aquele horror: o 'louco desejo de liberdade"', escreve Lucas ao reconstituir a morte de seu biografado.
O louco desejo de liberdade. Num Brasil em que o próprio presidente bate continência para a bandeira de outro país e prega a favor da ditadura (ou seja, contra a liberdade de seu povo), a memória de Tiradentes se faz necessária. Num país em que o presidente diz ser a própria Constituição, olhar para o que acontecia em alguns cantos do mundo naquele final de século 18 pode ser inspirador.
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.