Quem é responsável por uma morte na guerra? S. Aleksiévitch nos faz pensar
Rodrigo Casarin
19/02/2020 10h15
Intrometendo-se no cenário político do Afeganistão, em 1979 a União Soviética invadiu o país no centro da Ásia e iniciou uma batalha que se arrastou até 1989, deixando milhares de mortos. É essa guerra que está no pano de fundo de "Meninos de Zinco", livro da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura de 2015, que sairá por aqui no final deste mês pela Companhia das Letras. A obra foi publicada originalmente em 1991, mas só agora, graças ao trabalho de Cecília Rosas, ganha uma tradução para o nosso português (leia aqui um trecho do livro cedido ao Página Cinco).
O evento que puxa "Meninos de Zinco" pode estar mais distante do imaginário dos brasileiros do que os retratados em outros títulos de Svetlana ("As Últimas Testemunhas" e "A Guerra Não Tem Rosto de Mulher", por exemplo, versam sobre a Segunda Guerra, enquanto "Vozes de Tchernóbil" trata do acidente nuclear na atual Ucrânia), mas isso pouco importa. Ao mergulhar na obra, encontramos aquelas características que consagraram a escritora e jornalista: uma quantidade enorme de vozes, com depoimentos que singularizam histórias e humanizam as vítimas da estupidez humana – numa posição ambígua, essas vítimas muitas vezes são também agentes ativos dessa estupidez.
Em vez de tentarmos entender a guerra de acordo com interesses econômicos, geopolíticos ou estratégias militares, o que temos no texto de Svetlana são os homens e mulheres contando o que vivenciaram no campo de batalha. O discurso oficial ou de analistas versados no assunto dá lugar à fala de soldados, médicas, enfermeiras, líderes de batalhões…. Gente fundamental para que a guerra de fato aconteça. Gente que morre e que mata. Gente que sofre e provoca as situações mais bárbaras que alguém pode imaginar. Gente que eventualmente volta para casa e precisa passar o resto da vida tentando lidar com os inevitáveis traumas.
"Desesperadamente me dedico (livro após livro) ao mesmo trabalho — diminuo a história até chegar à escala do ser humano", escreve Svetlana no começo "Meninos de Zinco". Como sempre, a escritora atinge o objetivo. O resultado, aliás, é bastante semelhante ao que vemos em "Vozes de Tchernóbil" e "A Guerra Não Tem Rosto de Mulher", outros dois livros da Nobel que li: algo formalmente repetitivo, mas que serve para martelar a perturbadora realidade na cara do leitor.
Ao longo das páginas de "Meninos de Zinco", encontramos militares que, desesperados por drogas, bebiam até anticongelante de avião. As imagens de soldados feridos por explosões causam agonia. A dos caixões ainda vagos que aguardam pelos mortos que logo surgirão são comoventes – o título é uma alusão aos caixões de zinco nos quais os soviéticos caídos eram despachados para casa. Referências aos cheiros das pessoas queimadas embrulham o estômago de quem, em algum momento da vida, já teve o desprazer de sentir o odor do corpo humano nessa situação.
"Os cachorros que procuram minas ficavam ganindo dolorosamente. Eles também eram mortos e feridos. Cães policiais e pessoas mortas, cachorros e pessoas metralhados. Gente sem perna, cachorro sem pata. Não dá para separar onde na neve é sangue de cachorro, onde é sangue de gente", lemos em um dos relatos, que mostra como a brutalidade sequer se limita à espécie que vai deliberadamente para o campo de batalha.
Os depoimentos das mães que viram seus filhos partirem para a guerra e em muitos casos não voltaram merecem uma menção especial. Há relatos de mulheres que sequer torciam para que seus rebentos seguissem vivos, desejavam apenas que não fossem espancados, destroçados… Uma passagem registra a história de uma mãe que soube da morte de sua cria quando o caixão com o que restou do corpo foi deixado na portaria do prédio onde vivia. Outra narra um caso em que entregaram o caixão para uma mãe, que fez o enterro; um ano depois o filho, vivo, reapareceu. Há ainda confissões de mulheres que receberam seus "meninos" de volta, mas não reconheceram o arremedo de monstro que regressou à casa.
Com o passar das páginas, uma discussão emerge de "Meninos de Zinco": quem é o responsável pelo que acontece numa guerra? De quem é a culpa por uma morte: do soldado que atira ou do general que dá a ordem? E aqui vale inverter: no caso da morte de alguém importante do lado adversário, de quem é o mérito? Se subordinados apenas cumprem ordens, então toda a responsabilidade do que acontece no campo de batalha deve ser atribuída aos líderes do exército – ou, em último caso, ao líder máximo do exército, normalmente o mandatário de um país? Por outro lado, é certo tratar seres humanos, seres dotados de razão e autonomia, como meros fantoches que não sabem, não conseguem ou não podem ter discernimento em suas ações, condição que parece reservada justamente àqueles que com frequência precisam dar cabo da vida de outros seres humanos no campo de batalha? É justo e digno se esconder atrás de um "só estava cumprindo ordens"?
Levanto essas questões – procurando por respostas ancoradas em preceitos éticos, não meramente legais – porque todas elas me surgiram ao longo da leitura da obra. O assunto é recorrente nos depoimentos daqueles que conversaram com Svetlana. Alguns trechos como exemplo:
"Para quem está na guerra não há mistério na morte. Matar é só apertar o gatilho. Fomos ensinados: fica vivo quem atira primeiro. Essa é a lei da guerra. 'Aqui vocês têm que saber duas coisas: correr rápido e acertar o tiro. Quem pensa sou eu', dizia o comandante. Atirávamos onde mandavam. Eu atirava, não tinha pena de ninguém. Podia matar uma criança. Todo mundo lutava contra a gente: homem, mulher, velho, criança".
"Antes do Exército, quem me ensinava a viver eram Dostoiévski e Tolstói; no Exército eram os sargentos. O poder dos sargentos é ilimitado, há três sargentos num pelotão.
— Escute meu comando! O que um soldado tem que ter? Repita!
— O soldado tem que ter fuça insolente, punho de ferro e nenhum grama de consciência.
— Consciência é luxo para um paraquedista. Repita!
— Consciência é luxo para um paraquedista".
"Agora querem nos convencer de que cumprir uma ordem criminosa é crime. Mas eu acreditava em quem dava as ordens! Eu acreditava! Pelo que me lembro, o tempo todo me ensinaram a acreditar. Só acreditar! Ninguém me ensinou: pense se deve acreditar ou não, atirar ou não. Repetiam para mim: só acredite cada vez mais!"
"Tínhamos aulas de preparação política duas vezes por semana. Por acaso eu podia dizer: 'Tenho minhas dúvidas'? O Exército não tolera liberdade de pensamento. Você foi posto nas fileiras, de aí em diante só age sob comando".
Pelos abusos cometidos, pelo fracasso nos resultados, pela grana gasta, a campanha no Afeganistão foi uma das últimas vergonhas passadas pela União Soviética, que seria dissolvida poucos anos depois do conflito chegar ao fim. Sobre as questões levantadas, tendo a ficar com uma frase da escritora: "Em qualquer guerra, não importa quem e em nome de quem a façam — seja Júlio César ou Ióssif Stálin — as pessoas matam umas às outras. É assassinato". E um assassinato pode até ter mais de um culpado, mas aquele que puxa o gatilho ou dá a facada não pode ser isentado de suas responsabilidades.
Depois da obra ser publicada, os registros de Svetlana desagradaram muita gente principalmente pela maneira como os militares foram apresentados aos leitores, despidos de qualquer traço de heroísmo, com suas fraquezas e eventuais crimes explicitados. A autora foi processada por parentes de ex-combatentes que alegaram que seus depoimentos tinham sido deturpados. A ação teve um tremendo jeito de perseguição à jornalista, à liberdade de expressão. Documentos do processo, matérias de jornais e cartas de personalidades e instituições em defesa de Svetlana, bem como os desdobramentos do caso, estão presentes nas páginas finais de "Meninos de Zinco". O material é rico, dentre outras coisas, pela maneira que discute os limites entre o jornalismo e a arte.
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.