O que o governo de Rondônia vê de tão ameaçador em Rubem Alves?
Rodrigo Casarin
11/02/2020 09h32
Rolou no meu primeiro emprego, há alguns séculos. Trabalhava na parte administrativa de uma assessoria de cobrança. Certo dia, o colega da baia da frente demonstrou bastante interesse pelo livro que estava lendo: "O Que É Religião", do Rubem Alves para a coleção Primeiros Passos, da Brasiliense. Terminei a leitura e emprestei o pequeno volume pro curioso. Não lembro qual era a religião dele, só sei que era fervoroso e vivia com um exemplar da "Bíblia" sobre a mesa.
Quando perguntava como estava indo a leitura, ele resmungava coisa como "tem heresia ali" ou "as pessoas não podem ficar lendo isso". Não adiantava eu argumentar dizendo que o autor tinha sido pastor e era um profundo pesquisador e conhecedor das religiões. Para aquele colega, era inaceitável a maneira múltipla e tolerante como Rubem Alves encarava as diversas possibilidades de fé. Aparentemente, representava um perigo para o seu mundinho de certezas frágeis e inquestionáveis. Acabou que jamais devolveu aquele exemplar. Capaz de ter tacado fogo ou algo assim.
Lembrei disso por conta da lista de livros que o governo de Rondônia estava planejando caçar das bibliotecas de escolas públicas do estado. Títulos de Kafka, Machadão, Poe, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Ferreira Gullar, Cony… E, lá no final do documento, um adendo que me escapou numa primeira batida de olho, mas que uma leitora aqui do blog ressaltou: "Observação: Todos os Livros de Rubem Alves devem ser recolhidos". O louco! O que a administração de Marcos Rocha (PSL) vê de tão ameaçador em Rubem Alves?
Suspeito que tenha muito a ver com o pensamento e a forma de agir pouco plural – para dizer o mínimo – daquele meu antigo colega de escritório. Rubem Alves foi um humanista. Uma das pessoas por trás da Teologia da Libertação, entendia que a religião deveria servir para melhorar a vida dos mais necessitados neste mundo mesmo, não como plataforma para uma eventual vaga num eventual céu. Como educador, era amigo de Paulo Freire e entendia que a escola deveria ser um espaço de diálogo e intensa troca de experiências, com os alunos ocupando o protagonismo. Foi expulso da Igreja e perseguido pelos militares durante a Ditadura. Escreveu mais de uma centena de livros publicados em 12 países. Morreu em 2014, aos 80 anos.
Lendo crônicas de Alves, selecionei alguns trechos que ilustram o pensamento do autor. "De uma coisa estou convicto no momento: a menos que sejamos capazes de ter ousadia de pensar em termos utópicos, permaneceremos submersos nas contradições que nos ameaçam. Temos sido virtuosos do pensamento crítico e analítico. Mas temos sido pobres em visões. E quem não tem visões está condenado a beber até o fim as fezes que o presente nos legou", escreveu num texto de 1979.
Já em 1980, comentando a privatização da educação no país, deixou uma mensagem que soa ainda mais atual em nossos dias: "Um país que transforma sua segurança num bem vendável termina por entregar-se nas mãos de mercenários. Da mesma forma, um país que define a educação como um bem vendável entrega-se a uma política cultural mercenária e suicida".
Dando um salto no tempo, foi num artigo publicado em 2011 que achei essa bela mensagem: "Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, não têm beleza alguma. Mas, se um artista os juntar segundo uma visão de beleza, eles se transformam numa obra de arte. As escrituras sagradas são um livro cheio de cacos. Nelas se encontram poemas, histórias, mitos, pitadas de sabedoria, relatos de acontecimentos portentosos, textos eróticos, matanças, parábolas…. Ao ler as escrituras, comportamo-nos como um artista que seleciona cacos para construir um mosaico. Cada religião é um mosaico, um jeito de ajuntar os cacos.
Como no caso do labirinto literário de Borges cujos cacos eram peças de um quebra-cabeças que, juntos, formavam o seu rosto, também o mosaico que formamos com os cacos dos textos sagrados tem a forma do nosso rosto. Há tantos deuses quanto rostos há. Assim, quando alguém pronuncia o nome 'Deus' há de se perguntar: 'Qual?"'
Aposto que aquele meu colega de escritório ficaria furioso ao ler isso. Aposto que muita gente lá em Rondônia também.
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.