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Escravidão é assunto esgotado? Livro de Laurentino Gomes comprova que não

Rodrigo Casarin

19/11/2019 08h55

Laurentino em visita ao cubículo de uma senzala no Engenho Uruaé, na Zona da Mata de Pernambuco, com argola de ferro usada para imobilizar escravos. Foto de Carmen Gomes.

"Na economia escravagista havia até um negócio paralelo, tão constrangedor que nunca recebeu grande destaque na história da escravidão: a reprodução sistemática de escravos, com objetivo de vender as crianças, da mesma forma como se comercializam animais domésticos. Era uma prática tão repulsiva que são esparsos os relatos de experiências conduzidas em Portugal, na Espanha e nos Estados Unidos. Uma delas foi registrada no palácio ducal de Vila Viçosa, sede dos duques de Bragança, a dinastia que assumiria o trono de Portugal a partir do fim da União Ibérica, em 1640, com a ascensão de dom João IV ao poder. Ao visitar o local, em 1571, o italiano Giambattista Venturino se surpreendeu com a existência ali de um centro de reprodução de escravos. Segundo ele, eram tratados da 'mesma forma como manadas de cavalos são na Itália', com objetivo de obter o maior número possível de crianças cativas, que seriam vendidas em seguida por preços entre trinta e quarenta escudos".

Ler "Escravidão – Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal Até a Morte de Zumbi dos Palmares", primeiro volume de uma trilogia do jornalista Laurentino Gomes sobre a história da escravidão em nosso país, é se deparar a todo momento com atrocidades como esta: um centro de reprodução forçada de cativos. Não é novidade o processo de desumanização pelo qual negros foram submetidos ao longo de séculos para que fossem utilizados como escravos, mas, ainda assim, impossível não se chocar com passagens como a mencionada acima. Já tinha entrevistado o autor sobre a obra e publicado com exclusividade a introdução do volume. Agora trago minhas impressões sobre o título.

Laurentino acerta ao construir uma narrativa que a todo momento dialoga com o presente. Vivemos num país onde negros recebem menos do que os brancos, são mais assassinados pela polícia e costumam ser maioria nas áreas desprezadas pelo Estado. Realizando pesquisas para o trabalho, o escritor passou por mais de uma dezena de nações de três continentes diferentes e mostra como as consequências da escravidão ainda ecoam também nesses lugares – o leitor poderá ficar surpreso ao notar como o Brasil se assemelha, em diversos pontos positivos e problemáticos, muito mais a países africanos do que às nações ditas desenvolvidas com as quais normalmente nos comparamos. Diferente do que tentam pintar alguns, a ferida provocada por uma das maiores atrocidades da história humana ainda está longe de cicatrizar.

Destino de quase 5 milhões de africanos cativos – 40% dos cerca de 12 milhões enviados para a América –, o Brasil foi maior território escravista do Ocidente por quase 350 anos e hoje é o segundo país com a maior população negra ou de origem africana do mundo, atrás da Nigéria. Uma em cada três viagens de compra e venda de escravos foi organizada no Brasil. Os portugueses e brasileiros eram os campeões desse tipo de tráfico, o maior negócio do mundo até o começo do século 19, sendo responsáveis por praticamente metade dos escravizados embarcados na África. "Nos seus três séculos como colônia de Portugal, o Brasil foi sinônimo de açúcar. E açúcar era sinônimo de escravidão. [….] Só a partir de 1831 um novo rei despontaria no horizonte da economia brasileira: o café. E o café era, também ele, sinônimo de escravidão", escreve Laurentino. Essas são apenas algumas informações que evidenciam como o tráfico de escravos é um elemento central na formação do país.

Laurentino passa por assuntos como a invasão, apropriação, exploração e matança dos europeus ao darem as caras por aqui ("Quando os portugueses chegaram à Bahia, todas as regiões brasileiras já eram habitadas", recorda) e a escravidão dos indígenas – outra tragédia, esta bem menos documentada. Também constrói um panorama da África de séculos atrás, mostrando um continente muito mais vibrante e complexo do que pintam os esteriótipos, e explica de que forma líderes locais contribuíam para que os próprios africanos fossem escravizados.

Há mais informações que impressionam. Na África, cerca de 45% dos escravizados morriam no trajeto entre o lugar da captura e o litoral. Outros tantos não aguentavam as demais etapas da longa travessia. Estima-se que de cada cem pessoas capturadas, apenas 40 sobreviviam ao final da jornada. Ao longo de 350 anos, cerca de 24 milhões de pessoas foram lançadas nas "engrenagens do tráfico negreiro", aproximadamente 12 milhões morreram antes de sair da África. A outra metade foi colocada em navios, mas pouco mais de 10 milhões suportaram chegar ao destino. A trilha de corpos lançados ao mar pelas embarcações que traficavam seres humanos mudou, inclusive, o hábito dos tubarões no Oceano Atlântico. Os animais passaram a seguir os navios esperando para devorar as pessoas que eram descartadas. Os próprios navios deixavam um rastro peculiar: fediam tanto que, segundo marinheiros, era possível detectar sua presença em alto-mar antes mesmo que aparecessem na linha do horizonte.

Laurentino com o guia Beni Nazáro na Rota dos Escravos, em Ajudá, na República do Benim. Foto de Carmen Gomes.

Traço característico de outras obras do autor, como os best-sellers "1808" e "1822", diversos personagens são bem explorados por Laurentino. Há bom espaço para figuras incontornáveis num trabalho desta natureza, como a Rainha Ginga e Zumbi dos Palmares, mas o leitor pode ficar surpreso mesmo ao conhecer trajetórias de nomes que não costumamos ver com frequência por aí. Um exemplo? Francisco Félix de Souza. Ele nasceu em Salvador e, ainda jovem, mudou para a África, onde trabalhou como traficante de escravos. Tornou-se o mais rico, famoso e influente mercador de seres humanos da costa africana – teria mandado mais de meio milhão de escravizados para o Recôncavo Baiano. Quando morreu, em 1848, aos 94 anos, deixou 53 viúvas e mais de 80 filhos. Hoje, seus descendentes ocupam posições importantes na hierarquia social de quatro países: República do Benim, Nigéria, Togo e Costa do Marfim, outra comprovação de como a herança da escravidão impacta em nossos dias.

Seres humanos escravizando outros seres humanos não é algo que surgiu ali pelo século 15 nem teve a África como palco de estreia de tal atrocidade. "A escravidão é um fenômeno tão antigo quanto a própria história da humanidade", registra Laurentino. Para o autor, contudo, a escravidão nas Américas se distingue de outras por dois fatores: o regime de trabalho (os escravizados eram utilizados em "condição equivalente à das máquinas agrícolas industriais de hoje") e o nascimento da ideologia racista, "que passou a associar a cor da pele à condição de escravo…. O negro seria naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo, 'só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado da servidão', explica o africanista brasileiro Alberto da Costa e Silva. Sua vocação natural seria, portanto, o cativeiro, onde viveria sob tutela dos brancos". Duro notar que tal ideologia segue, de alguma forma, em vigor na cabeça de muita gente tosca por aí.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.